I DOMINGO DO QUARESMA
Ano – A; Cor – roxo; Leituras: Gn 2,7-9; 3,1-7; Sl 50 (51); Rm 5,12-19;
Mt 4,1-11.
“VOCÊ ADORARÁ O SENHOR SEU DEUS, E SOMENTE A ELE SERVIRÁ”. (Mt 4,10).
Diácono
Milton Restivo
A nossa
liturgia nos introduz no Tempo da Quaresma.
Termina a
primeira parte do Tempo Comum que teve início na festa do Batismo do Senhor e se
encerrou na terça-feira anterior à Quarta-Feira de Cinzas.
O Tempo da
Quaresma é um tempo destinado ao acolhimento do Reino de Deus pregado por
Jesus; começa na Quarta-feira de Cinzas e termina no Domingo de Ramos,
contados, exatamente, quarenta dias.
É um tempo em
que somos convidados à oração, penitência, jejum e às obras de misericórdia.
Nas Sagradas
Escrituras o número quarenta indica um tempo necessário para algo novo que vai
chegar, ou um tempo que se finda uma geração, ou um tempo para conversão, de
mudança de vida e de mentalidade como, por exemplo: - os quarenta dias que
duraram as águas do dilúvio (Gn 7,4.12.17; 8,6); - quarenta dias e quarenta
noites que Moisés passa entre as nuvens no cume do monte Sinai para receber as
tábuas da Lei (Ex 24,18; 34,28; Dt 9,9.11.18.25; 10,10); - quarenta anos de
caminhada do povo israelita pelo deserto (Nm 14,33; 32,13; Dt 2,7;0 8,2; 29,4;
Js 5,6; Sl 94,10; At 7,36; 13,18); - quarenta anos de reinado de Davi em Israel
(2Sm 5,4; 1Rs 2,11; 1Cr 29,27); - quarenta anos de reinado de Salomão em Israel
(1Rs 11,42; 2Cr 9,30); - quarenta dias de caminhada de Elias pelo deserto até
chegar no monte Horeb, a montanha de Deus ((1Rs 19,8); -quarenta dias e
quarenta noites que Jesus passou no deserto jejuando em oração e tentado pelo
demônio (Mt 4,2; Mc 1,13; Lc 4,2); - quarenta dias que Jesus passou entre os
apóstolos depois de sua ressurreição e antes de sua ascensão aos céus (At 1,3).
Quando alguém cometia
um erro, para corrigi-lo, a Lei de Moisés determinava que lhe dessem quarenta
chicotadas (Dt 25,3) e Paulo afirma que recebeu cinco vezes as quarenta chicotadas
menos uma por pregar o Cristo Ressuscitado (2Cor 11,24).
Muitas outras
citações do número quarenta acontecem nas Sagradas Escrituras preconizando
mudanças, sempre para melhor. Vemos ai que, nas Sagradas Escrituras o número
quarenta está implicitamente ligado à mudança de vida ou na expectativa de algo
novo que deveria acontecer.
O Tempo da
Quaresma não foge a essa prescrição e tem essa finalidade: mudança de vida e de
mentalidade e é a preparação de penitência, jejum e oração para a Páscoa.
Os períodos de
quarenta dias ou quarenta anos relacionados nas Sagradas Escrituras vêm sempre
antes de fatos importantes e se relacionam com a necessidade de ir criando um
clima adequado e dirigindo o coração para algo de destaque que vai acontecer: a
concretização da conversão, a passagem da escravidão para a liberdade; a
mudança de vida e de mentalidade, como dizia João Batista: “Convertam-se, porque o Reino de Deus está próximo”. (Mt 3,2), e
também Jesus: “Daí em diante, Jesus
começou a pregar, dizendo: ‘Convertam-se, porque o Reino de Deus está próximo.”
(Mt 4,17).
A Igreja
propõe, por meio do Evangelho proclamado na quarta-feira de cinzas, três
grandes linhas de ação: a oração, a penitência e a caridade. Não somente
durante a Quaresma, mas em todos os dias de sua vida, o cristão deve buscar o
Reino de Deus, ou seja, lutar para que exista justiça, a paz e o amor em toda a
humanidade.
A Quaresma é um
tempo forte de penitência.
A atitude
espiritual expressa por esta palavra, tantas vezes na boca dos profetas e de
Jesus, é uma atitude complexa e muito rica, suscitada pela consciência do pecado.
O Tempo da
Quaresma é um período propício para a conversão e penitência, jejum, esmola e
oração. É um tempo de cinco semanas em que nos preparamos para a Páscoa.
No Tempo da
Quaresma não se diz "Aleluia", nem se coloca flores na igreja, não
devem ser usados muitos instrumentos no coro e não se canta o Hino de Louvor, o
Glória.
O Tempo da
Quaresma é um tempo de sacrifício e penitências, não de louvor. Neste tempo a
Igreja chama o povo à penitência e à conversão e, nas leituras e nos seus
ensinamentos, enfatiza a misericórdia de Deus. A cor dos paramentos dos
ministros ordenados é a roxa.
Durante o
período quaresmal a Igreja do Brasil promove a Campanha da Fraternidade.
Neste primeiro domingo da Quaresma, através
da liturgia, a Igreja nos convida a estarmos no deserto com Jesus, durante os
quarenta dias e quarenta noites que lá esteve.
Os grandes acontecimentos da história da
humanidade e da história da salvação se desenrolaram e se consumaram no
deserto. A longa caminhada de
Abraão, desde a cidade de Ur, na Caldéia, até a terra de Canaã, transcorreu
sobre as areias escaldantes do deserto, conforme vemos no livro do Gênesis, do
capítulo 12 em diante.
A grande aventura de Moisés, desde a escravidão
do Egito até a liberdade do povo israelita, foi uma marcha interminável pelo
deserto do Egito até o deserto de Judá, conforme narra o livro do Êxodo. Os
profetas, desde Elias até João Batista, buscaram refúgio e se fortaleceram nas
coisas de Yahweh sobre as areias escaldantes e insólitas do deserto.
Com Jesus não foi diferente. No início de sua
missão, “o Espírito conduziu Jesus ao
deserto” (Mt 4,1). No deserto, onde todas as presenças desaparecem, somente
a presença divina resplandece.
Quando tudo cala, só Deus fala. Quando as
Sagradas Escrituras se referem ao deserto, não está falando de areias
infindáveis, calor intenso, natureza morta, mas está falando de silêncio,
solidão, oração, introspecção e espaço para ouvir o que o Senhor tem a nos
falar. Estar ou ir para o deserto quer dizer, viver intensamente, em
silêncio e solidão, num lugar afastado e apropriado, com uma relação pessoal
com Deus mediante uma atividade orante, múltipla e variada.
No deserto
impera o silêncio, e no silêncio do deserto a voz do mundo se cala e, no
silêncio, destaca-se a voz de Deus no coração do retirante. O silencio leva em
si a voz de Deus.
Após o seu batismo, “o
Espírito conduziu Jesus ao deserto” (Mt 4,1). O evento do deserto ocorre depois que Jesus recebe a
confirmação de seu ministério através do batismo.
A primeira
tarefa de Jesus foi provar que sua força e dependência estão somente em Deus, e
é por Deus, para Deus e através de Deus que seu ministério e sua vida teriam
sentido. Nisso, alguma coisa se destaca: as tentações vêm logo após o batismo
de Jesus, e Mateus complementa: “o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser
tentado pelo diabo.” (Mt 4,1).
O batismo foi a
definição e o ponto de partida e significava o assumir público da missão por
parte de Jesus. Logo após este compromisso, Jesus tem que enfrentar as
tentações.
Aqui a
experiência de Jesus é como a nossa própria: nós temos compromisso com o
projeto de Deus, mas entre o nosso compromisso e a prática dele, existem muitas
tentações. Com o cristão não é diferente do que como foi com Jesus. Pelo
batismo o cristão adere aos ensinamentos de Jesus e se propõe a ser mais um
tijolinho na grande construção da história da salvação preconizada pelo Criador
desde quando criara o homem e a mulher, como narra a primeira leitura (Gn 2,7-9),
passando pela encarnação do Verbo (Lc 1,26-38) e consumada no Calvário: “Está consumado. E, inclinando a cabeça,
entregou o espírito.” (Jo 19,30). As tentações são consequências dessa
adesão: o mal não suporta ver o bem se disseminar na terra.
Jesus é o
modelo para os cristãos que sofrem pressões e opressões.
O Espírito
Santo não conduz Jesus à tentação, mas se coloca com ele, dando-lhe todos os
meios para vencer a tentação, e é a força sustentadora dele durante os quarenta
dias de suas tentações. Todos os batizados, a quem o Pai diz como disse a
Jesus: “este é o meu Filho amado” (Mt
3,17b), e que assumem com responsabilidade o seu batismo, são tentados para
abandonar o caminho da paz, do amor e da fraternidade.
Jesus sentiu
fome: o demônio ataca, em primeira instância, no setor mais frágil do homem: o
estômago. Quando se está com fome elege-se até políticos corruptos que oferecem
cestas básicas e bolsas famílias para as satisfações mais primárias do ser
humano: a necessidade imperativa do alimento. Jesus era um homem que estava
faminto pelos quarenta dias e quarenta noites sem nada comer; pelo batismo, Jesus
fora identificado como “Filho amado do
Pai”, e o tentador não perdeu tempo: “Se
tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem pães”. (Mt 4,3). É
uma tentação das mais comuns nos nossos dias onde o consumismo impera pregando
a satisfação imediata dos desejos. E Jesus responde evocando uma advertência do
Antigo Testamento, conforme encontramos no livro do Deuteronômio: “... o homem não vive só de pão, mas o homem
vive de tudo aquilo que sai da boca de Yahweh”. (Dt 8,3).
É claro que o
homem não vive só de pão, mas vive também de pão, mas, pelo pão o homem não
deve desprezar o amor que o Pai tem por todos os seus filhos.
Jesus quer
deixar claro que, se o pão que alimenta não promover a justiça, a partilha, a
doação, a solidariedade com os sofredores, não alcança o seu objetivo, não
contribui para que o Reino de Deus venha para todos. Por isso é que, na oração
do Pai Nosso Jesus nos ensina a pedir “o
pão nosso de cada dia”, e não o pão meu nem seu, mas o pão nosso... Se o
pão não for nosso, não existe fraternidade, porque, o pão, depois de saciar a
minha fome e sobrar na minha mesa, deixou de ser meu e passou a ser do irmão
necessitado, e tem que ser partilhado.
Se não houver
partilha também não podemos chamar Deus de “Pai
Nosso”.
O demônio, ao
ver frustrada a sua primeira tentativa e não satisfeito, parte para o ataque
pela segunda vez: “Então o diabo levou
Jesus à Cidade Santa, colocou-o na parte mais alta do Templo. E lhe disse: ‘Se tu
és Filho de Deus, joga-te para baixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará
aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não
tropeces em nenhuma pedra’.” (Mt 4,6).
Desta vez o
tentador tenta naquilo que todo homem gostaria que acontecesse: que estivesse
sempre em evidência, que fosse o alvo das atenções, enfim, a fama. Todos querem
ser o alvo das atenções e que os holofotes da fama e do sucesso estivessem
sempre virados para si, e que caíssem sempre, em suas cabeças, confetes e serpentinas,
e os aplausos fossem abundantes. O tentador leva Jesus para um lugar de
destaque na praça e onde gente de todas as partes do mundo se aglomerava: a
parte mais alta do templo e bem no meio da praça, onde todos pudessem vê-lo sem
esforço e lhe diz: ‘Deus ordenará aos
seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em
nenhuma pedra’.” (Mt 4,6).
Interessante: o
demônio também conhece as Escrituras e a usa para atiçar a soberba do gênero
humano; ele buscou uma citação no livro dos Salmos para justificar a atitude
que Jesus deveria tomar para ser admirado por todos: “Pois ele ordenou aos seus anjos que guardem você em seus caminhos.
Eles o levarão nas mãos, para que seu pé não tropece numa pedra”. (Sl
91,11-12).
E Jesus responde
ao demônio também com uma citação bíblica: “A
Escritura também diz: ‘Não tente o Senhor seu Deus’” (Mt 4,7; Dt 6,16).
Já frustrado
por não ter conseguido alcançar o seu objetivo, o tentador tenta pela terceira
vez, levando Jesus a um alto monte e, mostrando-lhe todas as riquezas da terra
e propõe, em troca disso, que Jesus o adore: “Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”
(Mt 4,9). Quantos estão de quatro diante do desejo de sempre ter mais, não
importando a que custo e se esteja sacrificando ou jogando na miséria a tantos.
Quantos estão de joelhos diante das riquezas, colocando dinheiro nas cuecas,
nas meias e recebendo dinheiros ilícitos às portas fechadas, e a justiça do
homem é inoperante e conivente a essas atitudes. Mais tarde Jesus diria: “Vocês
não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24c).
Quantos estão
em atitude de adoração a quem oferece mais, sacrificando, desta forma, o
salário do trabalhador, a assistência médica dos menos afortunados, as moradias
dos desamparados, a educação das crianças que deveriam ser o futuro da nação, o
transporte do povo. Somos tentados a não acreditar na força dos pobres, de não
seguir o caminho do carpinteiro de Nazaré.
Jesus também
teve que enfrentar esta tentação; ele que veio para ser pobre com os pobres,
para mostrar o Deus que se volta preferencialmente para os pobres, e recebe a
proposta de confiar nas riquezas. Mas Jesus toma a atitude de quem é
compromissado com os desígnios da salvação de todos os homens e volta novamente
ao Antigo Testamento, repetindo o contido no livro do Deuteronômio: “É a Yahweh teu Deus que temerás. A ele
servirás e pelo seu nome jurarás.” (Dt 6,13). Para o tentador e para o
nosso mundo que idolatra o bem-estar material, as riquezas e o lucro, mesmo à
custa da justiça social, Jesus afirma: “Vá
embora, Satanás, porque a Escritura diz: ‘Você adorará o Senhor seu Deus, e
somente a ele servirá’” (Mt 4,10).
O demônio sabe
tudo de Deus, assim como tanta gente que quer induzir o povo a erro usa também
passagens das Sagradas Escrituras para alcançar os seus intentos maléficos. Não
é isso que vemos nas religiões milagreiras de televisão que usam o nome de Deus
para se promoverem e conseguirem prosélitos, conseguirem seguidores? Não usam o
nome de Deus para encher os seus cofres? Mas Jesus responde com outra citação
do Antigo Testamento, conforme consta no livro do Deuteronômio: “Não tentem a Yahweh seu Deus”. (Dt
6,16).
Realmente,
podemos nos encontrar nas tentações de Jesus. São as tentações do mundo moderno:
o ter, o poder e o prazer. Todas as coisas são boas em si, quando bem
utilizadas conforme a vontade de Deus, mas altamente destrutivas quando tomam o
lugar de Deus em nossas vidas. Jesus teve que enfrentar o que todos enfrentam: o
“diabo” que está dentro de cada um, de cada homem e mulher: o tentador que
procura desviar a todos da sua vocação de discípulos.
E o trecho desta
liturgia coloca a todos diante da orientação básica para quem quer vencer: “Você adorará o Senhor seu Deus, e somente a
ele servirá”. (Mt 4,10).
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