II DOMINGO DA QUARESMA
Ano – A; Cor – roxo; Leituras: Gn 15,5-12.17-18; Sl 26 (27); Fl 3,17 –
4,1.
"ESTE É O MEU FILHO AMADO QUE MUITO ME AGRADA. ESCUTEM O QUE ELE
DIZ." – (Mt 17,5).
Diácono
Milton Restivo
A
transfiguração de Jesus é uma passagem que se encontra em todos os Evangelhos
sinóticos: Lucas 9,28-36, Mateus 17,1-9 e Marcos 9,2-10. O interessante é que
cada um desses evangelistas trabalhou a seu modo a narrativa dentro dos
objetivos específicos que lhes era peculiar.
A transfiguração
de Jesus é o ponto culminante da sua vida pública, assim como o seu batismo é o
seu ponto de partida, e sua ascensão aos céus é o seu termo.
Pedro, na sua
segunda carta, refere-se a esse glorioso evento da seguinte maneira: “De fato, não tiramos de fábulas complicadas
o que lhes ensinamos sobre o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pelo
contrário, falamos porque somos testemunhas oculares da majestade dele. Pois
ele recebeu de Deus Pai a honra e a glória, quando uma voz vinda de sua Glória,
lhe disse: ‘Este é o meu Filho amado: nele encontro o meu agrado’.” (2Pd 1,16-18).
João também, no
seu Evangelho, não deixa passar despercebida a contemplação da glória de Jesus
que foi testemunhada por ele: “E nós
contemplamos a sua glória; glória do Filho único do Pai, cheio de amor e
fidelidade.” (Jo 1,4b). Então, podemos dizer que duas das testemunhas
oculares privilegiadas desse acontecimento fazem alusão à transfiguração de
Jesus.
Quando falamos
de Transfiguração de Jesus logo a associamos ao monte Tabor, mas, por incrível
que possa parecer, nenhum dos evangelistas que narra esse episódio, cita o fato
como acontecido nesse monte e nem cita o nome desse monte. Os evangelistas são
unânimes em afirmar que Jesus subiu numa “alta
montanha” (Mc 9,2; Mt 17,1), ou apenas “à
montanha” (Lc 9,28) sem citar o nome da montanha. Pela narrativa dos
Evangelhos não sabemos que montanha foi essa.
A tradição deu
o nome a essa montanha, como sendo o monte Tabor, a partir do século IV que
fora dito pela primeira vez por Cirilo de Jerusalém e por Jerônimo em suas obras
literárias. O monte Tabor não é
citado nenhuma vez no Novo Testamento, mas são encontrados treze registros do
monte Tabor no Antigo Testamento, a saber: Josias 19,12; 19,17;
19,22; 19,34; Juízes 4,6; 4,12; 4,14; 8,18; 1 Samuel 10,3; 1 Crônicas 6,62;
Salmo 89 (88),13; Jeremias 46,18 e Oséias 5,1.
Possivelmente,
depois de um dia cansativo de jornada e contato com o povo, Jesus sentiu
necessidade de um recolhimento para descansar, e pelo que vemos nas Sagradas
Escrituras, o seu melhor descanso era a oração.
O texto da
transfiguração, em primeira instância, destaca o aspecto de oração constante de
Jesus que é muito caro a Lucas: o fato de que Jesus era um homem de oração.
Neste momento ele “subiu à montanha para
rezar” (Lc 9,28).
Jesus retirava-se com frequência a sós e
passava horas em oração; por vezes, noites inteiras em oração. Nos momentos mais significativos da sua vida, Jesus orava. No
evangelho de Lucas, Jesus é, sobretudo, o grande mestre de oração e da
exultação no Espírito Santo.
No mundo do
Antigo Testamento Yahweh revelava-se frequentemente sobre as montanhas: “Abraão, tome seu filho, o seu único filho
Isaac, a quem você ama, vá à terra de Moriá, e o ofereça aí em holocausto,
sobre uma montanha que eu vou lhe mostrar” (Gn 22,1-14); “Moisés levou as ovelhas além do deserto e
chegou ao Horeb, a montanha de Deus. O anjo de Yahweh apareceu a Moisés numa chama de fogo, do meio
de uma sarça. Moisés prestou atenção: a
sarça ardia no fogo, mas não se consumia”. (Ex 3,1-6); “Yahweh disse a Moisés: ‘Suba até junto de mim na montanha, pois eu
estarei ai para lhe dar as tábuas de pedra com a lei e os mandamentos que
escrevi para os instruir’. Moisés se levantou com seu ajudante Josué. E subiram
à montanha de Deus”. (Ex 24,12-13); “Elias
se levantou, comeu e bebeu e sustentado pela comida, caminhou quarenta dias e
quarenta noites até o Horeb, a montanha de Deus. Elias entrou na gruta da
montanha, e ai passou a noite. Então Yahweh lhe dirigiu a palavra...” (1Rs
19,8-13).
Moisés e Elias,
que vão ser mencionados na passagem da transfiguração, receberam as suas
revelações num monte, e o monte ou montanha, no Antigo Testamento, era o local
onde o profeta ou um temente a Deus subia para fazer suas orações e
comunicar-se com o seu Deus.
No seu
Evangelho Lucas apresenta Jesus como um homem de constante oração e começa por
dizer que, após o seu batismo, Jesus entrou em oração. Como resposta
à sua oração, os céus abriram-se e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma
de pomba. No mesmo instante ouviu-se a voz de Deus Pai vinda do céu dizendo: “Tu és o meu Filho muito amado no qual ponho
o meu enlevo” (Lc 3,21-22; Mt 3,17; Mc 1,11).
Nos outros Evangelhos encontramos Jesus como
um homem assíduo na oração e com muita frequência, isso acontecia sobre uma
montanha ou no deserto: "De
madrugada, estando ainda escuro, ele se levantou e retirou-se para um lugar
deserto e ali orava" (Mc 1,35). Jesus é-nos apresentado pelos
evangelhos como um homem que orava nos momentos críticos.
Os grandes acontecimentos da vida de
Jesus também aconteceram num monte ou montanha; as bem-aventuranças e o sermão
da montanha nos capítulos de 5 a
7 de Mateus e os recolhimentos de Jesus em montes e montanhas para rezar ou
para tomar decisões importantes e radicais para o seu ensinamento.
No momento de
escolher os doze Apóstolos Jesus retirou-se para uma montanha e passou a noite
em oração: “Naqueles dias, ele foi à montanha para orar e passou a noite inteira em
oração a Deus. Depois que amanheceu, chamou os discípulos e dentre eles
escolheu doze, aos quais deu o nome de apóstolos...” (Lc 6,12-13); “Jesus subiu
ao monte e chamou os que desejava escolher. E foram até ele. Então Jesus
constituiu o grupo dos Doze, para que ficassem com ele e para enviá-los a
pregar, com autoridade para expulsar os demônios.” (Mc 3,13-15); “Ao raiar do dia, saiu e foi para um lugar deserto" (Lc 4,42a);
"Ele, porém, permanecia retirado em
lugares desertos e orava". (Lc 5,16); "Estando num certo lugar, orando, ao terminar, um de seus
discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a orar..." (Lc 11,1); "Tendo-as
despedido, subiu ao monte, a fim de orar a sós. Ao chegar a tarde, estava ali,
sozinho" (Mt 14, 23).
No Jardim das
Oliveiras, passou o tempo em oração e pediu aos discípulos para orarem a fim de
não entrarem em tentação (Lc 22, 39-42). Na cruz, orou pelos seus inimigos (Lc
23,34).
O texto da
transfiguração, em primeira instância, destaca o aspecto de oração constante de
Jesus que é muito caro a Lucas: o fato de que Jesus era um homem de oração.
Neste momento ele “subiu à montanha para
rezar” (Lc 9,28). Jesus
retirava-se com frequência a sós e passava horas em oração; por vezes, noites
inteiras em oração. Nos momentos mais significativos da
sua vida, Jesus orava. No evangelho de Lucas, Jesus é, sobretudo, o grande
mestre de oração e da exultação no Espírito Santo.
Desta feita
Jesus não vai sozinho. Escolhe três dos quatro primeiros escolhidos como seus
discípulos: Pedro, Tiago e João, e sobe a uma alta montanha.
Esta cena nos
reporta ao Êxodo 24,1-3 onde Moisés é convidado por Yahweh a subir à montanha
de Deus em companhia de Aarão, Nadab, Abiu, três auxiliares mais próximos de
Moisés e mais setenta anciãos. Somente Moisés se aproximou de Deus.
Também não foi
por acaso que Jesus levou consigo três dos seus discípulos, porque, no Antigo
Testamento, para se provar a veracidade de um fato ou delito havia a
necessidade do depoimento de duas ou três testemunhas: “Uma testemunha não é suficiente contra alguém, seja qual for o caso do
crime ou pecado. Em todo pecado que alguém tiver cometido, o processo será
aberto pelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas”. (Dt 19,15).
Além desta cena
da transfiguração na montanha, em outras ocasiões de suma importância de sua
vida e sua mensagem, Jesus também leva consigo esses mesmos três discípulos,
como, por exemplo, na ressurreição da filha de Jairo em Marcos 5,35 e no
Getsêmani antes de sua prisão, em Marcos 14,33, Mateus 26,37 e Lucas 22,40. Em
conversas particulares Jesus também procurava a companhia desses três
discípulos, como quando explicava sobre a destruição do Templo, só que, desta
feita, estava também André: “Jesus estava
sentado no Monte das Oliveiras, de frente ao Templo. Então Pedro, Tiago, João e
André lhe disseram em particular: ‘Dize-nos quando vai acontecer isso, e qual
será o sinal que de todas essas coisas estarão para acabar?”. (Mc 13,3-4).
Então, para
provar a veracidade de seu relacionamento com o Pai, Jesus quer que três dos
seus discípulos mais próximos sejam testemunhas oculares e auditivas. E Jesus,
em companhia desses três discípulos, sobe
a um monte alto e ali acontece a transfiguração.
No Evangelho de
Lucas a narrativa da transfiguração de Jesus vem na sequência do diálogo de
Jesus com Pedro e com os discípulos sobre, para a multidão e para eles, quem
era Jesus: “Quem dizem as multidões que
eu sou? [...] ‘E vocês, quem dizem
que eu sou?” (Lc 9,18.20), e como deveria ser o seu seguimento: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si
mesmo, tome cada dia a sua cruz, e me siga”. (Lc 9,23). Lucas começa a
passagem da transfiguração com as palavras: “Mais ou menos oito dias depois dessas
palavras, tomando consigo a Pedro, João e Tiago, ele subiu à montanha para
orar. Enquanto orava, o aspecto de seu rosto se alterou, suas vestes tornaram-se
de fulgurante brancura.” (Lc
9,28-29). Lucas
quer ligar estreitamente este texto com a mensagem anterior que vislumbra, à
distância, a cruz.
E na montanha,
em companhia de Pedro, Tiago e João, o rosto e as vestes de Jesus tornam-se
fulgurantes de luz. Moisés e Elias aparecem, e é importante notar que o
evangelista destaca sobre o que eles falavam: “de sua partida que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9,31). Uma
nuvem os cobre e uma voz do céu diz: “Este
é o meu Filho, o Eleito; ouvi-o” (Mt 17,5; Lc 9,35).
A nuvem e a luz
são dois símbolos inseparáveis nas manifestações do Espírito Santo. Desde as
manifestações de Deus (teofanias) do Antigo Testamento, a nuvem, ora escura,
ora luminosa, revela o Deus vivo e salvador, escondendo a transcendência de sua
Glória: durante a caminhada no deserto (Ex 14,19-20); com Moisés sobre a
montanha do Sinai (Ex 19,16; 24,16-17), na Tenda de Reunião (Ex 40,34-35) e com
Salomão, por ocasião da dedicação do Templo (1Rs 6,13).
Na
Transfiguração a Trindade se manifesta: o Pai, na voz; o Filho, no homem; o
Espírito Santo, na nuvem clara. E Jesus mostra sua glória divina, confirmando,
assim, a confissão de Pedro. Mostra também que, para “entrar em sua glória” (Lc 24,26), deve passar pela cruz em
Jerusalém.
Durante a
oração aparecem Moisés e Elias, símbolos da Lei e dos Profetas. Assim Mateus e Lucas
mostram que Jesus está em continuidade com as Escrituras, isso é, o caminho que
Jesus segue está de acordo com a vontade de Deus.
Os dois
personagens, tanto Moisés como Elias, foram profetas rejeitados e perseguidos
no seu tempo. Jesus não foi diferente deles, mas o Pai permanece com ele: “Este é o meu Filho amado que muito me
agrada. Escutem o que ele diz.” (Mt 17,5; Lc 9,35). Moisés e Elias haviam
visto a glória de Deus sobre a montanha; a Lei e os profetas tinham anunciado
os sofrimentos do Messias.
Fica claro que
a Paixão de Jesus é, sem dúvida, a vontade do Pai: o Filho age como servo de
Deus. Moisés foi o legislador do povo israelita e Elias o príncipe dos
profetas, e ali, na montanha, eles representavam a Lei e os Profetas, tudo o
que os judeus tinham de mais precioso na sua crença. No seu Evangelho Marcos
afirma que “as roupas de Jesus ficaram
brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar”.
(Mc 9,3).
Essa
transformação aponta para a realidade da ressurreição de Jesus. Ninguém, nem
mesmo a morte, poderá deter o projeto do Reino, pois o Mestre vai ressuscitar
depois de três dias.
Moisés e Elias,
presentes e conversando com Jesus, estão representando, respectivamente, a Lei
e os Profetas, confirmando, assim, a realização de tudo o que fora profetizado
sobre o Messias em todo o Antigo Testamento.
Moisés é o
líder da libertação do Egito. O comparecimento dele vem dar testemunho de
Jesus. Jesus é o libertador definitivo, prometido e prefigurado nos líderes do
passado.
Elias é o
restaurador da mensagem de Yahweh no Reino do Norte no tempo do rei Acab e o
profeta que libertou o povo da idolatria que gera opressão.
O Antigo
Testamento testemunha que Jesus veio para libertar mediante a entrega total de
sua vida. Nuvem, esplendor, personagens e, sobretudo, a voz que sai da nuvem
são modos de indicar a presença de Deus no acontecimento. O próprio Pai garante
que Jesus é seu Filho amado, ao qual é preciso dar adesão.
Nesse versículo
temos um dos pontos altos do Evangelho de Marcos. Desde o início do seu
Evangelho, Marcos afirma que Jesus é Filho de Deus: “Começo da Boa Notícia de Jesus, o Messias, o Filho de Deus”. (Mc 1,1)
e, ao ser batizado, o Pai diz: “Tu és o
meu Filho amado; em ti encontro o meu agrado” (Mc 1,11).
O termo “filho”
recorda o Salmo 2,7, onde o rei é declarado filho de Deus. Jesus é esse Rei,
mas seu messianismo passa pela entrega da vida.
Pedro, ao
despertar do sono, faz uma sugestão descabida: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, uma
para Moisés e outra para Elias”. (Mt 17,4; Lc 9,33).
Claro, era bom
ficar ali, num momento místico, longe do dia-a-dia, da caminhada, das dúvidas,
dos desentendimentos, da luta. Quem não iria querer? Mas não era uma sugestão
que Jesus pudesse aceitar. Terminado o momento de revelação, “Jesus estava sozinho”, e, ao amanhecer
o dia, “desceram da montanha” (Lc 9,37).
Por tão gostoso
que seja ficar no alto da montanha, é preciso descer para enfrentar o caminho
até o Monte Calvário. A experiência da transfiguração está intimamente ligada
com a experiência da cruz. Quem sabe, talvez a experiência da transfiguração na
montanha desse a Jesus a coragem necessária para aguentar a experiência bem
dolorida do Calvário.
A subida à montanha com Jesus é uma caminhada que
todos devemos e temos que fazer, para orar, para refletir, para ouvir, para
escutar. Este escutar com o sentido de obedecer é um compromisso de seguir
Jesus em todas as circunstâncias. Por isso não podemos querer, como os
discípulos, ficar e fazer tendas no cimo do monte.
Fazer tendas é sinal da acomodação, que se apodera
de nós facilmente, é o ficar ali, é o ficar longe dos acontecimentos, é o ficar
longe das dificuldades da vida, é o ficar a ver à distância, longe dos irmãos e
da comunidade. Mas a mensagem de Jesus é clara: depois da oração, depois de
ouvida a mensagem, é preciso descer da montanha, descer à terra, entrar no
mundo real passar à ação e pormo-nos à caminho.
É preciso que,
com Marcos, confessemos que Jesus é o Filho de Deus e o sigamos. E assim como
os discípulos viram Moisés e Elias falando com Jesus também nós veremos Jesus
cheio de esplendor, majestade e glória. Ele é a única autoridade credenciada
pelo Pai.
Ele está
conosco para sempre “até o fim do mundo” (Mt 28,20c).
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