quarta-feira, 1 de julho de 2020

IRMÃ DULCE - UMA SANTA NASCIDA NA BAHIA


IRMÃ DULCE - UMA SANTA NASCIDA NA BAHIA

Em 1949 eles eram 70. Doentes. Moradores de rua.
Para ajudá-los, uma só pessoa. Magrinha. Frágil. Sem recursos.
Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes tinha 35 anos e nenhum local para abrigá-los.
10 anos antes ela já havia invadido 5 casas na Ilha do Rato, em Água de Meninos, Salvador, para onde levara doentes recolhidos nas ruas. Foi expulsa e peregrinou com seus enfermos por vários locais da cidade.
Até que conseguiu autorização da madre superiora do Convento Santo Antonio para usar uma construção ao lado: um galinheiro.
67 anos depois aquele galinheiro se transformou no Hospital Santo Antonio, na Avenida Dendezeiros do Bonfim, 161, em Salvador, com uma média de 16,5 mil internações e 10 mil cirurgias anuais, 373 leitos, um Centro de Tratamento Intensivo e atendimento em 17 especialidades, divididas entre as enfermarias de clínicas Médica, de Longa Permanência (crônicos) e Cirúrgica.
E Maria Rita, a Irmã Dulce - Beata Dulce dos Pobres, a Bem-Aventurada Dulce dos Pobres - foi considerada santa pelo Vaticano: a primeira nascida no Brasil.
As galinhas criadas pela madre superiora? Viraram canja para os doentes.

13 de março de 1992. 16h45.
O coração de Irmã Dulce parou de bater.
Ela tinha 77 anos e há 2 mal conseguia respirar. 70% de seus pulmões estavam comprometidos.
Um ano antes, no dia 20 de outubro de 1991, recebera a bênção e extrema-unção, das mãos do papa João Paulo II.
Irmã Dulce tinha bronquiectasia, doença degenerativa que danifica as vias aéreas dos pulmões, causa tosse crônica e acúmulo de muco nos brônquios pulmonares.
Ela dormia no máximo 4 horas por dia, em uma cadeira de madeira maciça, o que fez por 30 anos - para pagar uma promessa que fizera pela recuperação de sua irmã, Dulcinha, que, em 1955, deu à luz a Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, sobrinha e atual superintendente das obras sociais. Dulcinha teve uma gravidez de alto risco e poderia morrer.  Irmã Dulce cumpriu a promessa até 1985, quando passou a dormir em uma cama após muita insistência dos médicos.
Seus últimos 16 meses foram de sofrimento, "meses de agonia, meses de Calvário", nas palavras de Dom Murilo Krieger, arcebispo de São Salvador da Bahia, primaz do Brasil.
O corpo de Irmã Dulce foi sepultado na Capela das Relíquias, na Igreja da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, em Salvador e, 8 anos depois, os restos mortais acabaram transferidos para a Capela do Convento Santo Antônio, sede das Obras Sociais Irmã Dulce, onde ficaram até 2011. A partir de então encontram-se no Santuário erguido no local.
Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes nasceu em 26 de maio de 1914, segunda filha de Dona Dulce Maria de Souza Brito Lopes Pontes e de Augusto Lopes Pontes, dentista e professor da Universidade Federal da Bahia, que nos anos 1920 saía pela cidade atendendo famílias sem condições de pagar um tratamento dentário.
O avô paterno, Manuel Lopes Pontes, nasceu em Santo Amaro em 1845. Político, advogado, professor  e militar, fundou o Colégio Santo Antônio na rua direita de Santo Antônio além do Carmo e foi um dos idealizadores do "Monumento aos Heróis do 2 de julho" sendo o tesoureiro da obra, em 1895. Ele também comandou o 5º Batalhão de Infantaria da Guarda Nacional, em 1897, no governo Luiz Viana, época da Guerra de Canudos.

Ladeira da Independência, 61, no bairro de Nazaré.
Era ali que morava a menina Maria Rita.
Foi naquela casa que decidiu se dedicar à vida religiosa, quando tinha apenas 13 anos, depois de visitar áreas carentes de Salvador, acompanhada por um tia. Mas era jovem demais e por esse motivo acabou recusada pelo Convento de Santa Clara do Desterro.
As imagens de fome e pobreza presenciadas por ela nunca foram esquecidas. E na casa de número 61 a menina de 13 anos começou a receber pessoas necessitadas, com o apoio da irmã Dulcinha. Logo eram tantos mendigos, moradores de rua e abandonados que a casa da Ladeira da Independência ficou conhecida como "a portaria de São Francisco".
Mas 6 anos antes ela já pedia farinha à mãe, para entregar aos garotos pobres de Água de Meninos.
Dulce Maria, mãe de Irmã Dulce, morreu aos 26 anos de idade. A menina Maria Dulce tinha 7 anos. Um ano depois fez a Primeira Comunhão, na Igreja de Santo Antônio Além do Carmo, junto com os irmãos Augusto e Dulcinha.
O amor e seus sonhos são a única porta para a eternidade.

-- Irmã Dulce --
Maria Rita teve que esperar até 8 de fevereiro de 1933, dois meses após receber o diploma de professora pela Escola Normal da Bahia, para ser aceita no Convento de São Francisco, na cidade de São Cristóvão, em Sergipe, pela Congregação da Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, primeira casa de formação desta congregação no Nordeste.
Ficava para trás a garotinha que brincava de guerra de mamona com os irmãos, empinava pipa, andava de bonde e fazia bordados. A menina que brincava na rua, sabia tocar acordeon e adorava futebol, a torcedora do Esporte Clube Ypiranga - time formado por operários -, que ia a todas partidas do clube do coração, com o pai e os irmãos, e vibrava a cada gol marcado (um tio seu dizia que ela nascera "no corpo errado”, tamanha era a sua paixão pelo esporte).
Mas continuava com ela a boneca Celica, que ganhara aos 4 anos, e que nas tardes de domingo emprestava às noviças do convento em São Cristõvão, cidade histórica a 22 quilômetros de Aracaju.
"Ela comia pouco, como um passarinho, em um pires", contava a Irmã Maria das Neves. "E só após se certificar que as outras irmãs estavam se alimentando corretamente."
13 de agosto de 1933.  Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes recebia o hábito e passava a usar o nome de Irmã Dulce, uma homenagem à mãe.

Anjo dos Alagados
15 de agosto de 1934. Irmã Dulce volta a Salvador, em companhia das Irmãs Tabita e Capertana, para trabalhar na abertura do Hospital Espanhol, no bairro da Barra, desempenhando funções de enfermeira, sacristã, porteira e responsável pelo raio X. Ela também recebeu a tarefa de ser professora de Geografia e História no Colégio Santa Bernadete, no Largo da Madragoa, na Cidade Baixa.
Em 1935,  surgia em Salvador a comunidade de Alagados, conjunto de palafitas na parte interna da Península de Itapagipe, sobre a Enseada dos Cabritos. A comunidade era formada por operários que trabalhavam nas antigas fábricas espalhadas pela península.
As casas, barracos de madeira construídos sobre estacas fincadas em mangues e ligadas por pequenas passarelas de tábuas "pairavam" sobre um mar de fezes e garrafas de plástico; os moradores conviviam com o cheiro forte de esgoto e as doenças surgidas da falta de saneamento básico.
A área chegou a ter 3,5 mil palafitas e cerca de 100 mil habitantes, só começando a ser erradicada na década de 80.
No mesmo ano Irmã Dulce criou um posto médico juntamente com o Dr. Bernadino Nogueira para atender operários da comunidade. A imprensa da época começava a chamá-la de “Anjo dos Alagados”.
"Ela limpava feridas, dava cobertor aos que tinham frio, dava medicamentos, cortava os cabelos destas pessoas, alimentava os que tinham fome e se aproximava daqueles em que ninguém ousava tocar", lembra Osvaldo Gouveia, assessor de Memória e Cultura das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid).  O ex-professor de Museologia  da Universidade Federal da Bahia (UFBa) chegou às obras em 30 de maio de 1993, para ficar 3 meses como auxiliar na fundação do memorial dedicado a contar a vida de Irmã Dulce. O que era para durar um trimestre perdura por 26 anos.
Gouveia é conhecido como ‘a bíblia humana da trajetória de Irmã Dulce’, tamanha a sua dedicação e conhecimento sobre a vida da  freira.

Uma cusparada
Irmã Dulce evitava envolvimento com política. “Ela sempre afirmou que o partido dela eram os pobres, era a pobreza. Nunca vi a imagem de Irmã Dulce em um santinho de um político e olhe que diversos deles vieram atrás dela para garantir votos; queriam ter a figura dela veiculada a eles e ela sempre foi muito categórica quanto a isso, sempre dizia não", diz Osvaldo Gouveia.
A freira baiana era insistente ao pedir dinheiro para a organização. Uma vez, recebeu uma cusparada de um feirante na Feira de São Joaquim, na mão que estendera.
“Ela não aceitava um não como resposta, porque sabia que a negativa não era para ela, mas para os pobres, para os miseráveis", explica o assessor de Memória e Cultura da Osid.

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