XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM
“ESTE POVO ME HONRA COM OS LÁBIOS, MAS O
CORAÇÃO DELE ESTÁ LONGE DE MIM”. (Mc
7,6).
Diácono Milton Restivo
Depois de refletir o capítulo sexto do Evangelho de
João, retornamos ao Evangelho de Marcos. Damos continuidade, através de Marcos,
ao conhecimento da pessoa e da doutrina de Jesus. Marcos aborda problemas entre
fé e tradição, ensinamento divino e ensinamentos humanos.
Lemos no evangelho de Marcos (7,1-23) que os fariseus
acusaram os discípulos de Jesus de comerem com as mãos impuras, isto é, sem as
ter lavado segundo a tradição dos antigos, o que ia de encontro com o
ritualismo religioso que eles, os fariseus, diziam cumprir rigorosamente e
impunham ao povo sob pena de, se o povo não a cumprisse, seria maldito.
Quem eram estes fariseus e por que Jesus se opunha
tanto a eles?
Os fariseus eram um grupo religioso que se originou
dois séculos antes de Jesus. Eram líderes de um movimento religioso para trazer
o povo de volta a uma submissão estrita à palavra de Deus e eram considerados
geralmente como os servos mais espirituais e observadores da Lei de Moisés e
adoradores de Deus.
Mas, na preocupação de fazer cumprir a vontade de Deus,
os fariseus criavam leis próprias e coisas absurdas e ritualizavam coisas que o
povo não tinha condições de cumpri-las e, por isso, os fariseus julgavam-se
santos e tinham o povo como escória, ignorante e maldito, e não perdiam
oportunidade de criticar e condenar os que não agissem como eles.
Eles desprezavam o povo
e o chamavam de povo
maldito: “Mas este povo que não
conhece a Lei, são uns malditos.” (Jo 7,49).
Mudou alguma coisa daquele tempo para os nossos dias?
Com existem fariseus ainda hoje.
Por isso, Jesus não os perdoa e chama a atenção do
povo a respeito das atitudes desses falsos santos (como chama a atenção do povo
hoje a respeito dos fariseus dos nossos dias): “Os doutores da Lei e os
fariseus têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés. Por isso vocês devem
fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imitem suas ações, pois eles
falam e não praticam’. (Mt 23,2-3). Se existem situações idênticas nas
nossas comunidades, não é mera coincidência, é que, realmente, os fariseus
ainda não deixaram de existir.
Jesus não fica por ai e continua: “Fazem todas as
suas ações só para serem vistos pelos outros. Gostam dos lugares de honra nos
banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas; gostam de ser cumprimentados
nas praças públicas e de que as pessoas os chamem mestre.” (Mt 23,5-6).
Na sequência dessas colocações, Jesus usou palavras
fortes contra os fariseus no Evangelho de Mateus: “Ai de vocês, escribas e
fariseus, hipócritas [...] Vocês exploram as viúvas, e roubam suas
casas, e para disfarçar, fazem longas orações.” (Mt 23, 13.14).
Ainda, no Evangelho de Mateus, Jesus os chama de
hipócritas (23,13.14.15.23.25.27.29), de irresponsáveis e cegos (23,17.26), de
guias cegos (23,16.24), cegos (23,19) de “sepulcros caiados, bonitos por
fora e cheio de ossos, podridão e mal cheirosos por dentro” (23,27), de “serpentes
e raça de cobras venenosas” (23,33).
Jesus aponta qual o grande pecado dos fariseus: “Vocês
abandonam os mandamentos de Deus para seguir a tradição dos homens. Vocês são
bastante espertos para deixar de lado o mandamento de Deus a fim de guardar as
tradições de vocês.” (Mc 7,8-9).
Os evangelhos estão cheios de controvérsias entre
Jesus e os fariseus, como em Mateus 9,11.34; 12,2.14.24.38; 15,1,12; 16,6-12;
Lucas 11,37-44; 12,1 e muitos outros textos.
A oposição vigorosa de Jesus contra os fariseus
deixava muitos perplexos. A maioria das pessoas daquele tempo pensava que se
alguém fosse fiel ao Senhor, certamente seriam os fariseus.
Jesus, decididamente, inverteu os valores do mundo; “Vocês
gostam de parecer justos diante dos homens, mas Deus conhece os corações de
vocês. De fato, o que é importante para os homens, é detestável para Deus”.
(Lc 16,15).
Ao chamar a atenção do povo a respeito dos fariseus,
Jesus foi categórico: “Com efeito, eu lhes garanto: se a justiça de vocês
não superar a dos doutores da Lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino
dos Céus”. (Mt 5,20).
Na ânsia de cumprir e fazer cumprir a Palavra de Deus,
os fariseus exageravam e se preocupavam mais com o exterior do que com o
interior; preocupavam-se mais com a higiene pessoal do que com a pureza de
coração no cumprimento aos mandamentos divinos.
Os judeus estavam entre a tensão das tradições criadas
e impostas pelos fariseus ao povo e a vida baseada na pureza do coração
apresentada por Jesus.
Jesus não estava contra a Lei, mas contra a
mentalidade dos fariseus na interpretação da Lei que destruía a fé pura. Jesus
critica os que anulam o mandamento de Deus pela tradição criada pelo próprio
homem: “Assim vocês esvaziaram a palavra de Deus com a tradição de vocês.”
(Mt 15,6).
Como vemos a primeira leitura, o livro do Deuteronômio
manda não colocar outro mandamento além do mandamento designado por Deus: “Não
acrescentem nada ao que eu lhes ordeno, nem retirem coisa nenhuma. Observem os
mandamentos de Yahweh seu Deus de modo como lhes ordeno. [...] Portanto,
coloquem tudo em prática, pois isso tornará vocês sábios e inteligentes diante
dos povos.” (Dt 4,2.6).
Mas para os fariseus a tradição que eles mesmos criaram
pesava mais e tinha mais valor do que as determinações de Deus. É o mesmo que
muitas vezes acontece e vemos também na Igreja nos nossos dias. Muitas vezes
damos mais valor ao ritualismo e às normas secundárias do que ao fundamental. É
muito comum a gente ouvir dizer, para se justificar que ‘sempre se fez
assim’. A moral que Jesus apresenta é opção por ele e não por ritualismos
que estão fora da Palavra de Deus.
Jesus não é contra o rito, mas contra o ritualismo.
O povo tinha consciência de ser o povo escolhido por
Deus e que tinha Deus bem próximo de si, como vemos na primeira leitura: “Qual
é a grande nação que tenha os seus deuses tão próximos, como o Senhor nosso
Deus, sempre que o invocamos?” (Dt 4,7).
A Lei de Deus é o grande testemunho da sabedoria do
povo, e é a expressão da vontade de Deus, que é a justiça: “Que grande nação
tem estatutos e normas tão justas como toda esta lei que eu lhes proponho
hoje?” (Dt 4,8). A religião só vai manifestar a presença de Deus se o fizer
pela prática de leis justas que respeitem o direito.
Mas, infelizmente, o que vemos, é tanta gente fazer da
religião um motivo para se promover, como o faziam os fariseus, para se julgar
mais santo e se julgar no direito de criticar, esquecendo-se do que Jesus disse
aos fariseus: “Vocês gostam de parecer justos diante dos homens, mas Deus
conhece os corações de vocês. De fato, o que é importante para os homens, é
detestável para Deus” (Lc 16,15), e também do que Jesus disse ao povo a
respeito dos fariseus: “Vocês devem fazer e observar tudo o que eles dizem.
Mas não imitem suas ações, pois eles falam e não praticam.” (Mt 23,3), o
que se deve ser entendido como: “façam o que eles dizem, mas não façam o que
eles fazem”.
Hoje, quantos cumprem religiosamente o “dever” de
participar da missa todos os domingos, não perdem uma solenidade festiva da
Igreja, comungam sempre que participam de uma celebração eucarística, rezam
periodicamente o terço, não perdem uma reunião de seu grupo, pagam o dízimo com
exatidão, mas ignoram o irmão, esquecendo-se do que o Mestre disse: “... eu
estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me
deram de beber; eu era estrangeiro e vocês não me receberam em casa; eu estava
sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não foram
me visitar. [...] Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês não
fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram.” (Mt
25,42-43.45).
De que adiantou então cumprir religiosamente as
ritualidades se se esqueceram da recomendação de Jesus: “O meu mandamento é
este: amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês. Não existe amor maior
do que dar a vida pelos amigos. Vocês são meus amigos, se fizerem o que eu
estou mandando”. (Jo 15,12-14).
A participação na Eucaristia só tem sentido e valor se
o mandamento do amor estiver sendo levado a sério, senão o farisaísmo do tempo
de Jesus continua operante nos nossos tempos.
Os fariseus do tempo de Jesus também cumpriam
rigorosamente as determinações ritualísticas, mas ignoravam as necessidades dos
seus irmãos, por isso foram recriminados por Jesus. Os fariseus repreenderam os
discípulos de Jesus por comerem pão com as mãos impuras, isto é, sem lavar as
mãos. Para os fariseus isso não era questão de higiene corporal, mas a tradição
que eles criaram dizia que não se podia tocar em alimento algum sem ter lavado
as mãos sem incorrer numa falta religiosa ou ritualística, e isso ofendia a
Deus, e por isso Jesus chama aos fariseus de hipócritas e depois explica aos
seus discípulos, dizendo: “Será que nem vocês entendem? Vocês não
compreendem que nada do que vem de fora e entra numa pessoa pode torná-la
impura, porque não entra em seu coração, mas em seu estômago, e vai para a
privada? ’ (Assim Jesus declarava que todos os alimentos eram puros).” (Mc
7,18-19).
Não é o que entra pela boca que torna o homem faltoso
com o seu Deus ou seu irmão, porque tudo o que entra pela boca tem como
destino, como disse Jesus, “a latrina”. Jesus continua dizendo: “É o
que sai da pessoa que a torna impura.” (Mc 7,20).
O que é que sai da boca das pessoas? As fofocas, a
maledicência, o ódio, a agressão, a inveja, o orgulho, a falta de amor, e por
isso Jesus diz: “Pois é de dentro do coração das pessoas que saem as más
intenções, como a imoralidade, roubos, crimes, adultérios, ambições sem limite,
maldades, malícia, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas
essas coisas más saem de dentro da pessoa, e são elas que a tornam impura.”
(Mc 7,21-23).
Em Mateus Jesus diz a mesma coisa, complementando e
dizendo: “Ao contrário, as coisas que saem da boca vêm do coração e essas
coisas é que tornam o homem impuro. Pois é do coração que vêm as más intenções:
crimes, adultério, imoralidade, roubos, falsos testemunhos, calúnias. Essas
coisas é que tornam o homem impuro; mas comer sem lavar as mãos não torna o
homem impuro.” (Mt 15,18-20).
Jesus declarou que a contaminação religiosa do ser
humano não reside na prática de ritos exteriores, mas na degradação interior do
coração que se manifesta exteriormente. Em outras palavras, Jesus deixou claro
que o mal que sai da boca é muito maior do que qualquer mal que possa entrar
nela quando se come alimento ritualmente impuro.
Nas bem-aventuranças Jesus disse: “Felizes os puros
de coração, porque verão a Deus.” (Mt 5,8). Não são os alimentos que entram
pela boca que torna o homem impuro, mas é a Palavra que purifica o coração: “Vocês
já estão limpos por causa da palavra que eu lhes falei. Fiquem unidos a mim, e
eu ficarei unido a vocês.” (Jo 15,3-4).
Nas suas cartas o Apóstolo Paulo transmitia às suas
comunidades esse mesmo ensinamento, quando escrevia: “Finalmente, irmãos,
ocupem-se com tudo o que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso,
virtuoso, ou que de algum modo mereça louvor.” (Fl 4,8).
Na carta aos Romanos, Paulo adverte aos que conhecem a
Palavra e mesmo assim deixam sair do coração toda espécie de ofensa que atinge
ao irmão: “Eles fazem o que não deveriam fazer: estão cheios de todo tipo de
injustiça, perversidade, avidez e malícia; cheios de inveja , homicídio, rixas,
fraudes e malvadezas; são difamadores, caluniadores, inimigos de Deus,
insolentes, soberbos, fanfarrões, engenhosos no mal, rebeldes para com os pais,
insensatos, desleais, gente sem coração e sem misericórdia. E apesar de conhecerem
o julgamento de Deus, que considera digno de morte quem pratica tais coisas,
eles não só as cometem, mas também aprovam quem se comporta assim.” (Rm
1,29-32).
Na terceira leitura Tiago ensina que, pela Palavra, o
Senhor nos criou e que o acolhimento da Palavra é o princípio da Salvação, pois
ela se identifica com Aquele que a comunica: “Por sua própria iniciativa,
ele nos gerou por meio da Palavra da verdade, para que nos tornássemos as
primeiras dentre as suas criaturas. [...] Sejam praticantes da Palavra,
e não apenas ouvintes, iludindo a si mesmos. Quem ouve a Palavra e não a
pratica, é como alguém que observa no espelho o rosto que tem desde o
nascimento; observa a si mesmo, e depois vai embora, esquecendo a própria
aparência.” (Tg 1,18.22-24).
Quem ouve a Palavra e não a pratica, perde a
identidade com quem o criou e esquece de sua própria fisionomia que é a imagem
e semelhança do seu Criador (cf Gn 1,26ss).
Quem ouve a Palavra e a põe em prática (cf Lc 11,29)
segue as pegadas do Mestre, exercita o mandamento do amor: “O meu mandamento
é este: amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês. Não existe amor maior
do que dar a vida pelos amigos. Vocês são meus amigos, se fizerem o que eu
estou mandando” (Jo 15,12-14) e somente valoriza no irmão o que ele tem de
belo e puro, não se preocupando com a maneira como ele se alimenta, se de mãos
limpas ou menos limpas; o importante é que o irmão está sendo saciado na sua
fome e é sobre isso que Tiago chama-nos a atenção: “Por isso, deixem de lado
qualquer imundície ou sinal de malícia, e recebam com docilidade a Palavra que
lhes foi plantada no coração e que pode salva-los.” (Tg 1,21).
A prática da Palavra se traduz no cuidado que temos
para com os necessitados: “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso
Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da
corrupção do mundo.” (Tg 1,27).
A Palavra será sempre a orientadora da verdadeira
religião, ensinando a não dar valor às tradições que anulam a Verdade e
estimulando à prática da solidariedade.
Ela forma o coração para que dele saiam não impurezas,
mas as obras do amor.
Sacrificar a prática do amor por tradições egoístas
não condiz com o projeto de Jesus.
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