XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM
“JESUS FAZ BEM TODAS AS
COISAS. FAZ OS SURDOS OUVIR E OS MUDOS FALAR”. (Mc
7,37b).
Diácono Milton Restivo
Quando lemos os Evangelhos, notamos que o povo judeu,
do tempo de Jesus, acreditava que os males corporais que afetavam o ser humano
(cegueira, mudez, surdez, paralisias e ou quaisquer tipos de doenças corporais)
ou eram consequência de interferência de maus espíritos ou demônios (cf Mt
9,32-33; Lc 11,3) ou estavam pagando por pecados cometidos anteriormente pelo
próprio doente ou por seus próprios pais, conforme vemos no Evangelho segundo
João, quando os apóstolos perguntaram a Jesus a respeito de um cego de
nascença: “Mestre, quem pecou: este homem ou seus pais, para que ele
nascesse cego?” (Jo 9,2).
Acreditava-se que até no ventre da mãe a pessoa
cometia pecado e, por isso, pagaria durante toda a sua vida com um mal físico.
Mateus, no seu Evangelho, compactua com essa
mentalidade de que muitas doenças corporais eram causadas por possessão
demoníaca: “Quando já tinham saído os
dois cegos, levaram a Jesus um mudo que estava possuído pelo demônio. Quando o
demônio foi expulso, o mudo falou, e as multidões ficaram admiradas e diziam:
‘Nunca se viu uma coisa assim em Israel’.” (Mt 9,32-33).
O Evangelista Lucas é reconhecido por muitos como
médico, e Paulo, na carta aos Colossenses, testemunha isso: “Lucas, o médico querido...”. (Cl 4,14).
No seu Evangelho Lucas narra: “Havia ai uma mulher que, fazia dezoito anos, estava com um espírito
que a tornava doente. Era encurvada e incapaz de se endireitar.” (Lc
13,11).
O próprio Lucas, como pessoa bem informada e instruída
que era por ser médico, e entenda-se que devia ter conhecimentos superiores
sobre enfermidades mais do que qualquer pessoa do povo pelos estudos que fizera
em medicina da época, reconhece que a doença da mulher é originada pela
possessão de um espírito. Mas Lucas continua na sua narrativa: “Vendo-a, Jesus dirigiu-se a ela, e disse:
‘Mulher, você está livre de sua doença’. Jesus colocou a mão sobre ela, e
imediatamente a mulher se endireitou, e começou a louvar a Deus.” (Lc
13,12-13).
Por sua vez, Jesus não fala em pecado e nem em
possessão de demônio ou de espírito; Jesus fala apenas da enfermidade: “você está livre de sua doença”.
No judaísmo o destino das pessoas que tinham qualquer
deficiência física era permanecer isoladas e pedir esmolas para conseguir
sobreviver. Os cegos, surdos, mudos, os amputados, os paralíticos pelas mais
variadas causas, acabavam abandonados pela família e pela comunidade e expostos
sem assistência de qualquer natureza pelos caminhos, ruas, logradouros e praças
públicas e, prova disso, está na parábola da grande festa narrada por Lucas: - “Vá depressa pelas ruas e pelos becos da
cidade e traga os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos.” (Lc 14,21).
Marcos, no seu Evangelho,
atesta: “Então chegaram a Jericó. Quando
Jesus e seus discípulos, juntamente com uma grande multidão, estavam saindo da
cidade, o filho de Timeu, Bartimeu, que era cego, estava sentado à beira do
caminho pedindo esmolas.” (Mc 10,46).
A proclamação das testemunhas que se admiraram da
maravilha realizada por Jesus: “Estavam
muito impressionados e diziam: ‘Jesus faz bem todas as coisas. Faz os surdos ouvir e os mudos falar”. (Mc
7,37b), realiza a profecia de Isaias que é lida na primeira leitura e que
afirma: “Então, os olhos dos cegos vão se
abrir, e se abrirão também os ouvidos dos surdos; os aleijados saltarão como
cervo, e a língua do mudo cantará, porque jorrarão água no deserto e rios na
terra seca.” (Is 35,5-6). O uso aqui desta profecia indica que o futuro
glorioso do novo Israel já está presente no ministério de Jesus.
O Evangelho de hoje Marcos nos diz: “E trouxeram-lhe um surdo, que falava
dificilmente; e rogaram-lhe que pusesse a mão sobre ele.” (Mc 7,32). Dos quatro evangelhos, somente Marcos
menciona este acontecimento.
Geralmente quem não ouve direito não fala direito
porque não consegue articular as palavras porque foram ouvidas com deficiência:
ouve com deficiência, fala com deficiência. Então, este homem tinha dois
problemas que definiam sua falta de comunicação. Tem orelhas, mas não tem
ouvidos.
Este homem além de surdo poderia não ser mudo, mas era
gago, como diz o evangelista: “trouxeram-lhe
um surdo, que falava dificilmente.” A pessoa fala o que ouve. Pelo
fato de não ouvir bem, não podia falar bem, não se comunicava bem. Sua língua
estava amarrada.
Então o homem que levaram a Jesus era “um surdo e gago”. Ignora-se o seu nome. Mas o que ele representa para os cristãos
de hoje? É um exemplo daqueles que “têm ouvidos e não ouvem” (Sl 115,6). Evidentemente, este versículo refere-se a uma condição
espiritual. Descreve um estado de surdez espiritual, uma incapacidade de ouvir
e compreender a verdade de Deus.
Este homem surdo e gago é como a maioria dos cristãos
de hoje; não falam de Deus porque não têm tempo de ouvir sobre Deus. Muitos
simplesmente não parecem ter a capacidade de ouvir e assimilar a Palavra de
Deus, ou porque são omissos, ou porque são desleixados das coisas de Deus.
Depois de algumas pessoas terem trazidos o surdo até
Jesus, na certeza de que Jesus poderia curá-lo, Jesus passa a ter interesse
pelo surdo. Agora é a vez de Jesus fazer alguma coisa.
Jesus entra em ação.
Normalmente os milagres de Jesus aconteciam em
público, mas, desta vez, ele inova, faz algo diferente. Este homem que foi
apresentado a Jesus não ouvia, era surdo e, portanto, não adiantava Jesus
falar: o surdo não haveria de entendê-lo. Jesus tinha que fazer.
Como a maneira desse homem se comunicar com o exterior
era somente com os seus olhos, porque não ouvia e nem falava direito, Jesus
usou de sua pedagogia divina: qualquer coisa poderia distrair o surdo se ele
continuasse no meio da multidão. E Jesus,
pegando o surdo, “tirando-o à parte, de entre a multidão, pôs-lhe os dedos
nos ouvidos; e, cuspindo, tocou-lhe na língua. E, levantando os olhos ao céu,
suspirou, e disse: Efatá; isto é, Abre-te. E logo se abriram os seus ouvidos, e
a prisão da língua se desfez, e falava perfeitamente.” (Mc 7,33-35).
A multidão, na maioria das vezes, atrapalha a ação de
Deus porque quer espetáculo, esquecendo-se que os grandes milagres acontecem no
silêncio, na intimidade. Por isso Jesus “tirou-o
à parte, do meio da multidão” para que nada pudesse prender a atenção do
surdo e ele se voltasse totalmente para Jesus.
É muito importante o significado no grego desta
palavra “à parte” (“tirou-o à parte”) que é ”katá” e significa ”partícula”. Jesus pode ver
as multidões, mas, no meio dela, vê o cristão como indivíduo; uma pequena
partícula onde ele chama à parte com dois propósitos: primeiro é ter intimidade
pessoal, ou seja, relacionamento verdadeiro, ser mesmo amigo e companheiro e,
segundo, abençoar suprindo suas necessidades.
Talvez Jesus tenha ensinado a todos os cristãos uma
maneira de se voltar a Deus: ver somente a Deus para depois ouvi-lo com
perfeição; tirar o cristão da multidão, do burburinho do mundo, de tudo que o
possa distrair e se voltar totalmente para Deus.
Quando o cristão se interioriza, o milagre acontece:
ele vê a Deus e ouve a Palavra de Deus.
Com o surdo não foi diferente: Jesus o tirou do meio
da multidão. Não havia mais motivos para distrações, e os olhos daquele homem
estavam somente em Jesus. A
princípio, o surdo só via Jesus. Depois ele passou a ouvir, pela primeira vez
em sua vida, e somente a Jesus.
Jesus
“pôs-lhe os dedos nos ouvidos; e, cuspindo, tocou-lhe na língua. E, levantando
os olhos ao céu, suspirou, e disse: Efatá; isto é, Abre-te. E logo se abriram
os seus ouvidos, e a prisão da língua se desfez, e falava perfeitamente.”
(Mc 7,33-35).
O Padre Bantu Mendonça K. Sayla, na sua Homilia
Diária, diz que interessante é notar que Jesus toca primeiro os ouvidos e
depois a boca: a catequese é primeiramente escuta, assimilação e a seguir, e,
como consequência, é anúncio.
Mas não são os gestos de Jesus que curam o surdo-mudo,
e sim sua palavra. Depois que Jesus ordenou “Abre-te!” é que seus ouvidos se
abriram e sua língua se soltou, e ele começou a falar sem dificuldade. Com isso
Marcos, no seu evangelho, esclarece a ação de Jesus. Jesus não é um mágico. Só
sua palavra liberta e reintegra, e as pessoas não precisam de rituais ou de
magia para abrir os ouvidos e anunciar que ele é o Messias.
Certamente todos já se perguntaram alguma vez qual o
significado da saliva de Jesus quando são lidos os textos da cura do surdo ou
do cego. Parece um tanto agressivo e diríamos, até nojento, à mentalidade atual
quando a Bíblia diz que Jesus cuspindo tocou a língua do mudo, ou cuspiu nos
olhos do cego (Mc 8,23), ou ainda, que cuspiu no chão, fez barro para aplicar
nos olhos do cego (Jo 9,6). Seria a saliva de Jesus medicinal? Teria Jesus
poderes divinos que eram transmitidos através da sua saliva? Havia, de fato, no tempo de Jesus a crença de
que a saliva tivesse propriedades terapêuticas. Na antiguidade a saliva era
considerada uma secreção com poderes mágicos ou sobrenaturais que cura ou
corrompe, que une ou dissolve, que adula ou insulta, e Marcos e João fizeram de
Jesus um homem de seu tempo, quando se acreditava que a saliva tinha poderes
curativos. Mas, o que os evangelistas deixam transparecer é que as curas de
Jesus, por meio de saliva, têm mais um significado teológico do que uma simples
cura de deficiência física.
Marcos nos diz que Jesus usou sua própria saliva para
tocar a língua do mudo.
Em outra ocasião, em Marcos mesmo, Jesus também usou
sua própria saliva para a cura de um cego: “Algumas
pessoas levaram um cego e pediram que Jesus tocasse nele. Jesus pegou o cego
pela mão, levou-o para fora do povoado, cuspiu nos olhos dele...”. (Mc
8,22-23) e, em João também isso se repete: “Jesus
cuspiu no chão, fez barro com a saliva, e com o barro ungiu os olhos do cego.”
(Jo 9,6). Jesus usou sua própria
saliva para tocar a língua daquele homem.
Depois de tocar os ouvidos do surdo abrindo-os, Jesus
solta a sua língua para que sua comunicação seja completa. Jesus
suspirou e disse: “efatá”, palavra aramaica que quer dizer “abra-te”. Encontramos o efeito da palavra efatá em
várias situações nas Sagradas Escrituras, como no caso de Lídia: “Lídia acreditava em Deus e escutava com
atenção. O Senhor abrira o seu coração para que aderisse às palavras de
Paulo”. (At 16,14b), e como no Salmo: “Abre, Senhor, os meus
lábios, e a minha boca entoará o teu louvor”. (Sl 51,17).
Interessante, ainda, é perceber que, antes de curar o
surdo-mudo, Jesus “olha para o céu e
suspira” (Mc 7,34). No suspiro de Jesus há um gesto de indignação diante da
situação em que se encontram tantas pessoas marginalizadas, sem voz e sem vez: “Depois olhou para o céu, suspirou e disse:
‘Efatá’!, que quer dizer; ‘Abra-se’. Imediatamente os ouvidos do homem se
abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade.” (Mc
7,34-45).
Jesus falou ‘efatá’ em aramaico, sua língua materna.
Ao dizer “efatá” abriram-se os ouvidos do surdo e soltou-se-lhe o empecilho da sua língua. Jesus
é aquele que abre os ouvidos e a boca das pessoas: “Jesus faz bem todas as coisas. Faz
os surdos ouvir e os mudos falar”. (Mc 7,37b),.
O surdo trata-se de pessoa incapaz de ouvir, de dar
seu consentimento, de testemunhar. Jesus leva essa pessoa para fora da
multidão.
Jesus cura o surdo-mudo longe da multidão para que
este se sinta, depois, responsável pelo anúncio daquilo que Jesus lhe fez,
tornando-se, por sua vez, evangelizador, isto é, portador da boa-nova de que “verdadeiramente este homem é Filho de Deus”
(Lc 23,47b).
Tocando Jesus o surdo-mudo, é o próprio Deus que se
ocupa de quem não podia ouvir nem falar, ou seja, ele está reintegrando em sua
dignidade e identidade alguém que fora privado da vida.
Isso está em íntima sintonia com a primeira leitura.
A multidão proclama que Jesus “tem feito bem todas as coisas: aos surdos fez ouvir e aos mudos falar”.
(Mc 7,37b).
Portanto, quem é Jesus? É aquele que cria o mundo
novo. É aquele que, vindo de Deus, devolve vida e liberdade aos oprimidos e
mutilados pela sociedade. Pela palavra e pelo toque de Jesus o próprio
surdo-mudo, depois de curado, torna-se evangelizador.
Este é grande desafio para o cristão que ouve a
Palavra de Jesus e é tocado por ele e por isso crê que deve ser cristão maduro
e comprometido.
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