XXIII DOMINGO COMUM
Ano – C; Cor – verde; Leituras: Sb 9,13-19; Sl 89; Fm 9b-10.12-17; Lc
14,25-33.
“SE ALGUÉM VEM A MIM, E NÃO DÁ
PREFERÊNCIA MAIS A MIM QUE AO SEU PAI, À SUA MÃE, À MULHER, AOS FILHOS, AOS
IRMÃOS, ÀS IRMÃS, E ATÉ MESMO À SUA PRÓPRIA VIDA, ESSE NÃO PODE SER MEU
DISCÍPULO”. (Lc 14,26).
Diácono
Milton Restivo
Sabedoria e um
dos livros deuterocanônicos da Bíblia. Isso quer dizer que não é aceito pelos
seguimentos protestantes e não se encontra nas suas Bíblias. Possui 19
capítulos. É normalmente atribuído a Salomão, porém estudos indicam que foi
escrito por um judeu de Alexandria.
O Livro da
Sabedoria é, por ordem cronológica, o último livro do Antigo Testamento. Embora
atribuído a Salomão, devido à fama de grande sábio do rei hebreu do século IX
aC, sabe-se que o verdadeiro autor da Sabedoria foi um judeu de Alexandria que
viveu no século I aC e que o teria escrito pelo ano 50 aC. O livro da Sabedoria
não consta da Bíblia protestante, mas é usado e referenciado em muitas
passagens do Novo Testamento, tanto nos Evangelhos como nos escritos dos
apóstolos.
Na liturgia de
hoje o livro da Sabedoria faz uma pergunta inquietante: “Quem pode conhecer a vontade de Deus? Quem pode imaginar o que o
Senhor deseja?” (Sb 9,13).
É muito comum
ouvirmos pessoas dizerem: “Seja o que
Deus quiser”. Outras vezes, para justificar alguma coisa incompreensível ou
injustificável, é dito: “Foi a vontade de
Deus”. Na oração do Pai Nosso dizemos: “Seja
feita a vossa vontade...”.
O Apóstolo
Paulo, nos seus escritos, retoma essa problemática, e diz: “Como é profunda a riqueza, a sabedoria e a ciência de Deus! Como são
insondáveis as suas decisões, e como são impenetráveis os seus caminhos! Quem
poderá compreender o pensamento do Senhor?” (Rm 11,33-34); “Pois, quem conhece o pensamento do Senhor
para lhe dar lições?” (1Cor 2,16a).
Estamos sempre
dizendo que tudo o que acontece é a vontade de Deus e, no que aconteceu, a vontade
de Deus foi feita, e que seja feita na nossa vida a vontade de Deus.
Mas, por que
muitas vezes nos revoltamos quando uma pessoa amada é tirada do nosso convívio íntimo pelo fenômeno da morte? Então,
porque oramos a Deus pedindo que seja feita a sua vontade se quando a vontade
de Deus se cumpre em nossa vida nos revoltamos? Quando a vontade de Deus
contraria a nossa vontade, brigamos com ele, portamo-nos de maneira infantil da
mesma maneira que uma criança mimada que é contrariada pelos pais.
Em primeira
instância, qual é a vontade de Deus em relação aos homens para quem ele enviou
seu Filho único “não para condenar o
mundo, mas para o mundo seja salvo por ele”? (Jo 3,17). A vontade de Deus é
a felicidade plena de todos os seus filhos.
Qual seria o
pai ou a mãe que não poderia querer isso?
É justo dizer, quando uma criança, que brincava na rua, tenha sido
atropelada e morta por um motorista embriagado, que isso tenha sido a vontade
de Deus? Ou que alguém, que não tenha
observado as orientações de segurança ou não respeitado as leis de trânsito,
tenha provocado um grave acidente e até a sua morte e morte de outras pessoas,
que tenha sido a vontade de Deus? Ou que alguém tenha morrido de câncer depois
de ter fumado a vida inteira? Ou de cirrose depois de beber da mesma forma? Não, essa não é a vontade de Deus. Tudo isso é
consequência da irresponsabilidade, da falta de obedecer a normas de segurança
e sobrevivência e de respeitar a própria vida e a vida do outro.
A vontade de
Deus é que nada disso aconteça, mas, se acontece, passa a ser responsabilidade
daqueles que não levaram a sério os preceitos de amor que nos foram
transmitidos por Jesus: “Ouça, ó Israel!
O Senhor nosso Deus é o único Senhor! E ame ao Senhor seu Deus com todo o seu
coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com toda a sua
força. O segundo mandamento é este: Ame ao seu próximo como a si mesmo. Não
existe outro mandamento mais importante do que esses dois”. (Mc 12,29-31).
João, Apóstolo
e Evangelista, reforça esse ensinamento de Jesus: “Se alguém disser: "Amo a Deus", mas não ama seu irmão, é
mentiroso. Porque aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar
a Deus a quem não vê. Temos de Deus este mandamento: quem ama a Deus, ame
também a seu irmão". (1Jo 4,20-21).
Paulo Apóstolo
define qual é a lei e a vontade de Deus: “Porque
toda a Lei está contida numa só palavra: Amarás o teu próximo com a ti mesmo”. (Gl
5,14).
A vontade de
Deus é a Lei do amor, E Jesus nos deixa um novo mandamento, o mandamento da
vontade de Deus: “Eu dou a vocês um
mandamento novo: amem-se uns aos outros. Se vocês tiverem amor uns pelos
outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos. [...] O meu mandamento é este: amem-se uns aos
outros, assim como eu amei vocês. Não existe amor maior do que dar a vida por
seus amigos. Vocês são meus amigos, se fizerem o que eu estou mandando”. (Jo
13,34-35; 15,12-14).
O amor suplanta
todos os demais mandamentos, porque, quem ama, ama a Deus sobre todas as
coisas, não toma o santo nome de Deus em vão, não deseja o que é do próximo,
respeita a vida do próximo, respeita os bens do próximo e, assim sendo, não
mataria, não roubaria, não cometeria adultério, não desejaria nada que fosse do
próximo, respeitaria pai e mãe. Essa é a vontade de Deus.
Os dez
mandamentos da Lei de Moisés estão resumidos no novo mandamento de Jesus
Cristo; quem cumpre o novo mandamento com responsabilidade, amor e dedicação,
está cumprindo, sem ter que se preocupar, os mandamentos da lei mosaica.
Quando rezamos:
“seja feita a vossa vontade...”, é
isso que pedimos: que a vontade de Deus, que é a realização plena do amor, seja
levada a efeito entre os homens. E o livro da Sabedoria complementa: “Quem poderá conhecer o teu projeto, se tu
não lhe deres sabedoria, enviando do alto o teu espírito santo?” (Sb 9,17).
Pelo Espírito Santo do Pai, que nos foi enviado por Jesus, temos conhecimento
qual seja a vontade de Deus. O que é necessário agora é colocá-la em prática.
O Salmo
responsorial é uma oração coletiva de súplica diante da fragilidade e brevidade
da vida humana: “Tu reduzes o homem ao pó...
[...] Tu o semeias ano por ano, como
erva que se renova: de manhã ela germina e brota, de tarde a cortam e ela seca.
[...] Nossos dias passaram sob a tua
cólera, e como suspiro nossos anos se acabaram. Setenta anos é o tempo de nossa
vida, oitenta anos, se ela for vigorosa. E a maior parte deles é fadiga inútil,
pois passam depressa, e nós voamos. [...] Ensina-nos a contar os nossos anos, para que tenhamos coração sensato”.
(Sl 90 (89),3a.5.9-10.12). O que é a vida humana diante da eternidade de
Deus?
Deus ultrapassa
as gerações humanas e toda a criação. O salmista afirma: “O homem é como um sopro; os seus dias como sombra que passa”. (Sl
144 (143),4). E o profeta Isaias declara: “Todo
ser humano é erva e toda a sua beleza é como a flor do campo: a erva seca e a
flor murcha, quando sobre ela sopra o vento de Iahweh; a erva seca e a flor
murcha, mas a palavra de nosso Deus se realiza sempre” (Is 40,6-8; 1Pd
1,24-25). Enquanto isso, o homem vive brevemente e acaba morrendo. E nisso
tudo, a vontade de Deus vai se realizando.
A segunda leitura é da carta de Paulo a
Filemon. É a mais breve e a mais pessoal das cartas, mas não é uma carta
privada, é aberta à comunidade. Esta carta tem uma particularidade: de tão
breve que é, não tem capítulos, só tem versículos. É mais um bilhete do que uma
carta. Foi escrita de próprio punho por Paulo “Eu, Paulo, escrevo com minha própria mão” (19). É uma das cartas
chamada de “epístolas do cativeiro”, considerando que, por três vezes Paulo
recorda à Filemon sua situação de prisioneiro (1.9.13).
Nesta carta Paulo
dirige-se, também, à Igreja que se reúne na casa de Filemon. Tudo indica que
Filemon fora convertido ao cristianismo por Paulo. Filemon possuía um escravo:
Onésimo, que não era batizado, não era cristão. O escravo Onésimo fugiu do seu
dono e procurou abrigo junto de Paulo, que estava no cativeiro. Paulo converte
Onésimo, batiza-o, tornando-o irmão na fé e o devolve a Filemon “não mais
como escravo, e sim, mas muito mais do que escravo: você o terá como irmão
querido; ele é querido por mim, e o será muito mais por você, seja como homem,
seja como cristão” (16), como irmão na fé; “portanto, se você me
considera como irmão na fé, recebe-o como se fosse eu mesmo” (17).
No Evangelho
Jesus diz que a fé de quem deseja seguí-lo, deve ser radical: não tem meios
termos. Este texto é composto por duas parábolas. A primeira parábola é a do
construtor que constrói uma torre: “De
fato, se alguém de vocês quer construir uma torre não se senta primeiro a
calcular a despesa para ver se tem o suficiente para terminar? Não suceda que,
depois de assentar os alicerces, não seja capaz de concluí-la e então todos os
que olhem comecem a fazer troça, dizendo: ‘Este homem começou a edificar, mas
não foi capaz de concluir!” (Lc 14,28-30).
A segunda
parábola é do rei que se prepara para ir à guerra: “E qual é o rei que parte para a guerra contra outro rei e não se senta
primeiro para ver se é capaz de se opor, com dez mil soldados, a quem vem
contra ele com vinte mil? Caso contrário, enquanto o outro ainda vem longe,
manda-lhe uma delegação a pedir as condições de paz”. (Lc 14,31-32).
Tudo isso para
nos dizer que, quando o cristão toma a iniciativa de seguir Jesus, deve ter consciência
da responsabilidade que assumiu para que a torre que começou a construir não
caia e a guerra que planejou contra o mal não tenha fins desastrosos.
O que constrói
a torre reflete bem primeiro sobre os custos e os riscos que a construção vai lhe
trazer e tem que estudar para ver se tem condições de sustentar todas as
despesas necessárias e superar todos os contratempos. Da mesma forma o rei que
pretende travar uma batalha: calcula, em primeiro lugar, a consistência das
suas forças e as possibilidades que tem de chegar à vitória, senão é loucura
começar a guerra.
Seguir a Jesus
é uma empreitada dura e custosa. Por isso, aquele que decide ser cristão deve
calcular muito bem as forças, os deveres que assume e os riscos que vai correr.
Jesus inicia a
sua chamada de atenção com palavras fortes, contundentes e que chocam e que,
para os menos avisados, chega às raias do absurdo: “Se alguém vem a mim, e não dá preferência mais a mim que ao seu pai, à
sua mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs, e até mesmo à sua própria
vida, esse não pode ser meu discípulo”. (Lc 14,26).
Jesus não passa
a mão na cabeça de ninguém: é taxativo e radical, não tem meios termos e não
usa meias palavras. Não se pode colocar os pés em duas barcas ou acender uma
vela para Deus e outra para o diabo. Poderia existir amor maior do que a
dedicação pela família? Ao pai, à mãe, à esposa, aos filhos, aos irmãos, às
irmãs?
Será que Jesus
está sendo tão egoísta que está enciumado pelo amor que devemos aos nossos
familiares? Não, não é isso. Amar ao pai e à mãe é um preceito forte deixado
por Deus ao povo do Antigo Testamento e a todos os homens de todos os tempos. É
isso que Jesus quer. Quem ama a Deus em primeiro lugar e segue seus
mandamentos, amará e respeitará mais pai, mai esposa, filhos, irmãos, irmãs...
Quem ama a Deus em primeiro lugar, ama seu próximo com mais intensidade.
Poderia haver
maior preocupação do que a de se conservar a própria vida? É por isso que Jesus
chega à radicalidade. Em primeira instância, Jesus nos dá prova do que seja um
grande amor, de um imenso amor, de um amor que, conforme ele mesmo diz, não
existe maior prova: “Não existe amor
maior do que dar a vida pelos amigos”. (Jo 15,13), e isso ele não somente
falou, mas fez. Jesus mostra o tamanho do amor do Pai, e mostra a todos que, se
existe um amor que se pode chamar de louco, é o amor do Pai: “Pois Deus amou de tal forma o mundo, que
entregou seu Filho único, para que, o que nele acredita não morra, mas tenha a
vida eterna”. (Jo 3,16).
O amor que o
Pai tem pelos homens é um amor que não tem tamanho: é maior que a mais alta das
montanhas e mais profundo que o mais obscuro dos abismos. Pode um pai dar a
vida de seu filho único para que outros possam ter vida? Você pai, você mãe,
faria isso? O filho que é a razão do seu viver, da sua alegria, da sua
esperança e no qual você coloca todo o seu amor? Não foi isso que o Pai falou a
respeito do seu Filho amado? “Este é meu
Filho amado, em quem coloco todo o meu amor”. (Mt 3,17; 17,5). É desta
maneira que o Pai revela o seu amor aos homens. Primeiro, o Pai nos dá a prova
do seu amor, entregando o seu Filho único para a salvação de todos. Segundo, o
Filho dá prova de seu amor se entregando à morte por todos e por cada um de
nós.
Será que o que
ele está nos pedindo nesta oportunidade é muito? Mas, então, porque ele colocou
no coração do homem e da mulher a vocação para o matrimônio? Para serem marido
e mulher, serem pais, terem filhos e viver uma vida harmoniosa com os seus pais
e irmãos? Para depois tirar tudo isso para que ficasse provado o amor que
deveriam ter para com ele? Não! Jesus jamais nos pediria isso! O que ele pede é
que seja cumprido o primeiro e o maior de todos os mandamentos, independente de
qualquer outra coisa, como Yahweh já havia dito para o povo israelita que
caminhava pelo deserto à busca da terra prometida: “Ame a Yahweh seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e
com toda a sua força”. (Dt 6,5). Nos seus ensinamentos Jesus ratifica esse
mandamento e o revigora, anexando a ele um segundo mandamento: “Ame ao Senhor seu Deus com todo o seu
coração, com toda a sua alma, e com todo o seu entendimento. Esse é o maior e o
primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Ame ao seu próximo como a
si mesmo”. (Mt 22,37-39; Lc 10,27; Mc 29-31).
O amor a Deus
deve estar sobre e acima de tudo o mais que possamos querer nesta vida. Tudo o
que temos e somos recebemos das mãos de Deus: a terra que pisamos, o ar que
respiramos, os pássaros que cantam, as flores que embelezam e perfumam, o sol
que ilumina e aquece, a chuva que faz reviver a planta ressequida, as estrelas
que fulguram no infinito. E não somente isso. Recebemos a graça de termos um
corpo perfeito com movimentos claros e precisos, saúde, disponibilidade, com
inteligência e percepção para as coisas. Recebemos mais: os pais que temos, os
irmãos, enfim, uma família que se ama e se ajuda mutuamente. Recebemos mais: a
esposa, o marido, os filhos... Então, chegamos à conclusão que tudo o que temos
e somos, recebemos das mãos de Deus numa manifestação plena do seu amor. O que
Jesus nos pede é que não amemos mais o presente que recebemos do que aquele que
nos presenteou. O Pai nos deu tudo; a ele devemos adoração, agradecimento e
glória. Não se ama mais o presente do que quem o deu. E amando quem nos
presenteou, vamos amar ainda mais o presente recebido. Amando a Deus, vamos
amar e respeitar mais nossos pais, nossos irmãos e irmãs, nossas esposas,
esposos, filhos... Jesus jamais nos pediria que os deixássemos; apenas quer que
os amemos com o amor que vem de Deus e, para isso, precisamos amar a Deus com
todo o nosso coração, com toda a nossa alma e com toda a nossa força, com todo
o nosso entendimento. Essa é a radicalidade do ensinamento de Jesus: só amamos
verdadeiramente os nossos se colocarmos o amor a Deus sobre e acima de todas as
coisas.
E Jesus termina
dizendo que, se não colocarmos o amor a Deus sobre e acima de todas as coisas,
não podemos ser seus discípulos.
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