III DOMINGO DA PÁSCOA
“JÁ AMANHECERA, JESUS ESTAVA DE PÉ, NA
PRAIA...” (Jo 21,4).
Diácono Milton Restivo
O Evangelho segundo João termina no capítulo 20,31 com
as seguintes palavras: “Jesus realizou
diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro.
Estes sinais foram escritos para que vocês acreditem que Jesus é o Messias, o
Filho de Deus. E para que, acreditando, vocês tenham a vida em seu nome.” (Jo
20,30-31). Com estas palavras João termina o seu evangelho. Mas, a seguir, vem
o capítulo 21. Todo o capítulo 21 do Evangelho segundo João é um acréscimo,
isto é, acrescentado depois de terminado o Evangelho propriamente dito e, em
todas as Bíblias que manuseamos, o capítulo 21 é antecedido pela palavra
“apêndice” ou “epílogo”.
No rodapé da Bíblia de Jerusalém encontramos a
explicação: “Acrescentado pelo próprio
evangelista ou por um de seus discípulos”. No rodapé da Bíblia do Peregrino
consta: “Este capítulo é acréscimo
evidente; provavelmente acrescentado por um membro da escola de João, e muito
cedo, pois consta em todos os manuscritos”. No rodapé da Bíblia TEB, temos:
“Situado após o epílogo de 20,30-31, este
último capítulo representa o apêndice”. Na Bíblia Edição Pastoral
encabeçando o capítulo 21 encontra-se apenas a palavra “apêndice”.
O capítulo 21 do Evangelho de João é claramente um
acréscimo no Evangelho segundo João. Não sabemos se depois de terminado o seu
Evangelho João achou por bem colocar um adendo ou se foi um de seus discípulos
o tenha feito para fortalecer a igreja da comunidade joanina. Muito menos
sabemos em que época isso possa ter acontecido.
Este capítulo é uma
bem-aventurança para todos os que creriam depois. Para nós, inclusive.
Por que João ou algum de seus discípulos tenha feito isto?
O início deste capítulo mostra que Pedro deserta. “Vou pescar” (Jo 21,3), sendo que o original grego diz: “vou pescar continuamente” isto é, “vou
voltar à minha vida antiga de pescador”.
Pedro estava desistindo do seu apostolado, do seu ministério. Optara para ser
pescador novamente, voltar à sua vida antiga, a vida que tinha antes de
conhecer o Mestre. Toda a comunidade apostólica segue a Pedro e toda a
comunidade fracassa nessa pescaria: não conseguem, durante toda a noite, pegar
um peixe sequer. Na desistência da pescaria, Jesus se chega a eles (Jo 21,4).
A história toma novo rumo. Sob a direção de Jesus, a
pesca se torna proveitosa. Pedro se preocupa com João (Jo 21,21), o mais moço
deles, e é repreendido por Jesus. De maneira fantástica, o escritor sagrado
coloca na boca de Jesus a sua última palavra no seu evangelho: “Segue-me tu” (Jo 21,22). Assim, o
evangelista, ao termino sua obra, coloca uma bem-aventurança para os que creriam
sem ver: “Felizes os que acreditaram sem
ter visto” (Jo 20,29), e a recomeça e a conclui, por fim, com um desafio de
Jesus a Pedro: “quanto a você, siga-me”.
(Jo 21,22).
Mas, vamos meditar por outra ótica esse capítulo 21 do
Evangelho segundo João. A cena se desenrola nas margens do mar de Tiberíades.
Este mar é conhecido nos Evangelhos sinóticos como lago ou mar da Galiléia ou
de Cafarnaum. O nome “Tiberíades” só aparece no Evangelho segundo João, que o
explica no capítulo 6,1: “Depois disso,
Jesus foi para a outra margem do mar da Galiléia, também chamado Tiberíades”. Aqui
é chamado de Tiberíades, porque o imperador de Roma era Tibério César. Era,
inicialmente, no Antigo Testamento, chamado Mar de Quinerete (Nm 34,11) e nos
tempos do Novo Testamento de Lago de Genesaré (Lc 5,1) e também Mar de
Tiberíades (Jo 6,1; Jo 21,1), assim como Mar da Galiléia nos sinóticos. Somente
no Evangelho segundo João o lago ou mar é chamado de Tiberíades. Grande parte
do ministério de Jesus Cristo decorreu nas margens do lago de Genesaré. O
Evangelho segundo Marcos (1,14-20) e o Evangelho segundo Mateus (4,18-22)
descrevem como Jesus recrutou quatro dos seus apóstolos nas margens do lago de
Genesaré: o pescador Pedro e seu irmão André, e os irmãos, também pescadores,
João e Tiago, filhos de Zebedeu. Um famoso episódio evangélico, o Sermão da
Montanha, teve lugar numa colina com vista para o mar e muitos dos milagres de
Jesus também aconteceram ali: caminhada pela água, acalmar uma tempestade,
alimentar cinco mil pessoas e muitos outros.
O capítulo 21 de João é de uma beleza impar e de uma espiritualidade
comoventes. Os personagens envolvidos neste ato têm passagens importantes em
todo o Evangelho de João. Neste capitulo 21 tem um significado especial o nome
de mar de Tiberíades, porque o escritor tinha a intenção de universalizar a
missão e a mensagem que Jesus deixara para os seus apóstolos.
O nome “Tiberíades” era uma homenagem ao imperador
romano Tibério César e, como o império romano abrangia todo o mundo conhecido
da época, era este o “mar” que, supostamente, alcançava as fronteiras
conhecidas.
Assim narra este acontecimento o evangelista: “Estavam juntos Simão Pedro, Tomé chamado
Gêmeo, Natanael de Caná da Galiléia, os filhos de Zebedeu e outros dois
discípulos de Jesus”. (Jo 21,2). Interessante são os personagens que o escritor
sagrado coloca nesse acontecimento: Simão Pedro, Tomé chamado Gêmeo, Natanael
de Caná da Galiléia, os filhos de Zebedeu e outros dois discípulos anônimos de
Jesus.
Vamos analisar individualmente cada um desses
discípulos.
“Simão Pedro”, o primeiro discípulo a
ser chamado por Jesus, juntamente com o seu irmão André, ambos pescadores: “Jesus andava a beira do mar da Galiléia,
quando viu dois irmãos: Simão, também chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam
jogando a rede no mar, pois eram pescadores. Jesus disse para eles: ‘Sigam-me,
e eu farei de vocês pescadores de homens’. Eles deixaram imediatamente as redes
e seguiram a Jesus”. (Mt 4,18-20). Depois disso, Pedro viria a ser o
discípulo que sempre se antecipava aos demais para responder questionamentos de
Jesus, principalmente quando Jesus perguntou aos discípulos: “E vocês, quem dizem que eu sou?” Pedro
toma a dianteira e responde por todos: “Tu
és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. (Mt 16,15-16), oportunidade em que Jesus transfere a
Pedro a primazia entre os apóstolos, quando lhe diz: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas
do inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos
Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra
será desligado nos céus”. (Mt 16,18-19). Também, na escolha de outro
apóstolo para tomar o lugar de Judas Escariotes, é Pedro que toma a iniciativa:
“Naqueles dias, Pedro levantou-se no meio
dos irmãos [...] e disse...”. (At
1,12). Como vemos, nesse acontecimento narrado no capítulo 21 de João, é Simão
Pedro quem toma a iniciativa e chama a todos para irem pescar: “Simão Pedro disse: ‘Eu vou pescar’. Eles
disseram: ‘Nós também vamos’. Saíram e entraram na barca”. (Jo 21,3). Isso
demonstra a sua ascendência sobre os demais.
“Tomé”, o apóstolo que relutou para crer
na ressurreição de Jesus: “Se eu não vir
a marca dos pregos nas mãos de Jesus, se eu não colocar o meu dedo na marca dos
pregos, e se eu não colocar a minha mão no lado dele, eu não acreditarei”. (Jo
20,25), mas que depois, ao constatar a realidade do Cristo Ressuscitado e movido pela poderosa fé
que sentia no seu coração, disse o que até aí não tinha descoberto: “Meu Senhor e meu Deus”. (Jo 20,28).
Tomé tornou-se o primeiro dos apóstolos a
se dirigir a Jesus nestes termos, chamando-o de “Meu Deus”. Ninguém, até aquele momento, nem mesmo Pedro e nem João haviam pronunciado a palavra “Deus” dirigindo-se a Jesus.
“Natanael”, a quem Jesus chamou de “um israelita verdadeiro e sem falsidade”,
como vemos quando Natanael foi apresentado a Jesus por Filipe: “Filipe se encontrou com Natanael e disse:
‘Encontramos aquele de quem Moisés escreveu na Lei e também os profetas: é
Jesus de Nazaré, o filho de José’. Natanael disse: ‘De Nazaré pode sair coisa boa?
’ Filipe respondeu: ‘Venha, e você verá’. Jesus viu Natanael aproximar-se e
comentou: ‘Eis ai um israelita verdadeiro e sem falsidade”. Natanael perguntou:
‘De onde me conheces?’ Jesus respondeu: ‘Antes que Filipe chamasse você, eu o
vi quando você estava debaixo da figueira’. Natanael respondeu: ‘Rabi, tu és o
Filho de Deus, tu és o rei de Israel’.” (Jo 1,45-49). Fica patente nesse diálogo entre Jesus e Natanael que, nos
Evangelhos, Natanael é o primeiro a reconhecer Jesus como “Rabi”, como “Filho de Deus”
e como “rei de Israel”. Na afirmativa
de Jesus de que Natanael era “um
israelita verdadeiro e sem falsidade”, demonstra que Natanael era alguém
que conhecia as Escrituras, que aguardava o Messias prefigurado e prometido em
todo o Antigo Testamento que ele conhecia muito bem e que viu em Jesus a
realização de todas as promessas feitas.
“Os filhos de Zebedeu”, que não seriam
outros senão os irmãos, também pescadores, João e Tiago, que foram, também,
juntamente com os irmãos Simão Pedro e André, os primeiros discípulos a serem
chamados por Jesus: “Indo mais adiante,
Jesus viu outros dois irmãos: Tiago e João, filhos de Zebedeu. Estavam na barca
consertando as redes com seu pai Zebedeu. E Jesus os chamou. Eles deixaram
imediatamente a barca e o pai, e seguiram a Jesus.” (Mt 4,21-22). Pedro,
João e Tiago eram as colunas que sustentavam a Igreja nascente em Jerusalém,
conforme testemunho de Paulo Apóstolo: “...
conhecendo a graça em mim concedida, Tiago, Cefas (Simão Pedro) e João, os notáveis tidos como colunas,
estenderam a mão a mim e a Barnabé em sinal de comunhão...” (Gl 2,9).
“Outros dois discípulos de Jesus”, com
certeza homens que o escritor sagrado faz empenho de manter no anonimato. Por
quê? Claro que o escritor conhecia esses “dois discípulos de Jesus”, pois que
não se convida alguém para pescar sem o conhecer, e se o conhece, com certeza
sabe seu nome. O escritor os conhecia e sabia os seus nomes, mas, porque o
omite?
No total são sete os personagens que habitam essa
narrativa: Pedro, o que tem primazia sobre os apóstolos; Tomé, o descrente, mas
que vê sua fé fortalecida e reconhece em Jesus o próprio Deus; Natanael, o
conhecedor e estudioso das Sagradas Escrituras e crítico nas coisas que dizem
respeito à Lei; os filhos de Zebedeu sendo um deles, João, o “Discípulo amado”
e o outro, Tiago, o primeiro bispo de Jerusalém que foi o primeiro apóstolo
mártir, morto à espada pelo rei Herodes: “Nesse
tempo, o rei Herodes começou a perseguir alguns membros da Igreja, e mandou
matar à espada Tiago, irmão de João”. (At 12,2) e, finalmente, os dois
discípulos anônimos, possivelmente representando os que se converteriam mais
tarde e acreditariam na mensagem de Jesus.
Na escolha desses
personagens o escritor, colocando sete deles, possivelmente tentou representar todas as comunidades conhecidas da época
ou as mais importantes entre todas as comunidades.
Vemos aqui a soma de sete discípulos: sete é a soma de
três mais quatro: três, a natureza divina de Cristo, se referindo à Santíssima
Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo e, quatro, a natureza humana de Jesus, (
se referindo aos elementos terra – água – ar – fogo), unindo, na pessoa de
Jesus o divino, por ter ele a natureza divina, e o humano, por ter assumido a
natureza humana: “E a Palavra se fez
homem e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória: glória do Filho
único do Pai, cheia de amor e fidelidade”. (Jo 1,14).
São sete os discípulos citados nessa passagem,
possivelmente se referenciando, também, ao mesmo número das Igrejas citadas no
Livro do Apocalipse: “Escreve num livro
tudo o que você está vendo. Depois mande para as sete Igrejas: Éfeso, Esmirna,
Pérgamo, Tiatira, Sardes Filadélfia e Laodicéia”. (Apo 1,11), e as
mensagens destinadas a essas igrejas estão assim distribuídas no Apocalipse: Éfeso
Apo 2,1-7; Esmirna Apo 2,8-11; Pérgamo Apo 2,12-17; Tiatira Apo 2,18-19; Sardes
Apo 3,1-6; Filadélfia Apo 3,7-13 e Laodicéia Apo 3,14-22.
Depois dos acontecimentos do julgamento, paixão e
morte de Jesus na cruz houve um descrédito total e geral entre os seguidores do
Mestre, e a respeito disso nos fala Lucas, 24,13-35, no desânimo dos discípulos
que abandonaram Jerusalém depois da morte de Jesus, e se dirigiam para suas
casas na cidade de Emaús para dar reinício às suas vidas, agora desolados, sem
o Mestre.
Carlos Mesters, no seu livro: “Deus, onde estás?”
escreve: “Com a morte de Jesus, morreu
algo na vida dos apóstolos, alguma coisa de fundamental importância. A vida
para eles já não tinha mais sentido... A morte de Jesus matou alguma coisa no
íntimo dos apóstolos, como a morte do marido mata algo na esposa que fica; a
morte do amigo mata algo no íntimo do amigo que fica. Matando o Cristo, mataram
o futuro do coração dos apóstolos. Estancou-se a fonte, a água acabou.
Destruíram a turbina, a luz apagou”.
A narrativa do capítulo 21 sugere que Pedro se deixou
contagiar também por essa desilusão e desânimo e estava desistindo de tudo e
voltando para a sua vida antiga de pescador, já que a morte do Mestre ocasionou
uma frustração imensa em todos.
A narrativa começa com a deserção de Pedro: “Simão
Pedro disse a eles: ‘Eu vou pescar’. Eles disseram: ‘Também vamos contigo’. Saíram
e entraram na barca, mas não pescaram nada naquela noite.” (Jo 21,3). “Vou
pescar”, mas, no original grego é dito: “vou pescar continuamente”, ou
seja, “a partir de hoje e dos últimos acontecimentos, vou voltar para casa e
assumir a minha antiga profissão de pescador”.
Pedro, desanimado e descrente, retoma ao seu passado e
diz: “Eu vou pescar!”. Os outros se
deixaram contagiar pelo desânimo e descrença de Pedro, disseram: “Nós vamos com você!”.
Assim, com Pedro, foram Tomé, Natanael, João, Tiago e
mais dois discípulos não identificados, totalizando sete pessoas que
acompanharam Pedro, e saíram de barco para pescar.
O pescador de homens volta à vida antiga, volta a ser pescador
de peixes, se esquecendo do convite e intimação que Jesus lhe fizera no
primeiro encontro que tiveram: “Sigam-me, eu farei de vocês pescadores de
homens”. (Mt 4,19).
Pedro estava desistindo do que assumira com Jesus.
Voltava a ser pescador como antes de conhecer e ser chamado pelo Mestre. Toda a
comunidade apostólica, induzida pelo seu exemplo, segue a Pedro e deserta com
ele, e toda a comunidade fracassa. Não estava importando se Jesus morrera e
ressuscitara. Foram bons os tempos em que passaram com Jesus naqueles três anos
de convivência com o Mestre. Desiludidos, os discípulos voltaram para suas
origens: a Galiléia. Retomaram a vida do passado como se nada tivesse
acontecido, tentando apagar o passado. Mas, essa volta ao passado sem o Mestre
foi um fracasso: pescaram a noite toda, mas não pegaram nada.
A noite simboliza trevas, ausência de luz, ausência de
Cristo; enquanto eles pescavam à noite, Cristo não estava com eles. Experimentam
o fracasso pela ausência de Jesus com eles.
Desistiram da pescaria e estavam voltando à praia.
Cansados. Foi uma noite frustrante.
Noite... no escuro... Nada conseguiriam sem Jesus
porque se esqueceram do que Jesus dissera: “Eu sou a videira, e vocês são os
ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele, produz muito fruto; porque sem
mim nada podeis fazer...” (Jo 15,5).
“Quando amanheceu...” (Jo 21,4).
Estava amanhecendo; o sol surgia no horizonte
expulsando as trevas, iluminando os vales, refletindo-se garbosamente, com suas
cores douradas, nas águas do lago.
O nascer do sol é o tempo da graça. O sol nascendo é
Cristo ressuscitando, glamoroso, rompendo as trevas do pecado, da ingratidão,
do preconceito, do desrespeito aos direitos humanos...
“Quando amanheceu, Jesus estava na margem. Mas os
discípulos não sabiam que era Jesus”. (Jo
21,4). A princípio, Jesus não se dá a conhecer. É um desconhecido. É alguém que
está com fome.
O desconhecido pergunta: “Rapazes, vocês têm alguma
coisa para comer?” Eles responderam: “Não!” (Jo 21,5). Na resposta negativa
chegaram à conclusão que a noite tinha sido realmente frustrante e que não
pescaram nada mesmo, não pegaram peixe algum.
Eles tinham sido chamados para serem pescadores de
homens (Mc 1,17; Lc 5,10), e voltaram a ser pescadores de peixes. Mas isso já
não era mais possível porque algo mudou em suas vidas!
A experiência de três anos com Jesus provocou neles
uma mudança radical e irreversível. Já não era mais possível voltar para trás
como se nada tivesse acontecido, como se nada tivesse mudado.
Jesus determina, com a autoridade de quem sabe o que
está dizendo: “Joguem a rede do lado direito da barca, e vocês acharão
peixe”. (Jo 21,6a). A barca simboliza a Igreja, os discípulos são os seus ministros
e a rede a evangelização pela Palavra, porque “Deus colocou tudo debaixo dos pés de Cristo e o colocou acima de todas
as coisas, como Cabeça da Igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que
plenifica tudo em todas as coisas”. (Ef 1,22-23).
“Joguem a rede do lado direito da barca...” Mas, por que do lado direito da barca?
Porque são as ordens de Jesus, e os discípulos lançam
a rede à direita do barco, porque a direita é o lugar dos escolhidos: “E colocará as ovelhas à sua direita e os
cabritos à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde
vós, os abençoados por meu Pai. Recebei como herança o Reino que meu Pai vos
preparou desde a criação do mundo’.” (Mt 25,33-34).
Porque a direita é o lugar das bênçãos: “... em seguida, molhando o dedo de sua mão
direita no óleo que está na mão esquerda, fará sete vezes com o dedo uma
aspersão de óleo diante do Senhor”. (Lv 14,16).
Porque a direita é onde colocado o sinal dos
escolhidos: “Conseguiu que todos,
pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, tivessem um sinal na mão
direita e na fronte”. (Apo 13,16).
Porque é à direita que o Senhor mostra o seu poder: “A direita de Yahweh é poderosa! A direita
de Yahweh é sublime! A direita de Yahweh é poderosa!” (Sl 118 (117),
15-16).
Porque a direita é o lugar do Filho Ressuscitado junto
ao Pai: “O Senhor Jesus foi levado aos
céus, e sentou-se à direita de Deus”. (Mc 16,19); “Esse Jesus Cristo, tendo subido ao céu, está assentado à direita de
Deus, depois de ter recebido a submissão dos anjos, dos principados e das
potestades”. (1Pd 3,22); “Mas, cheio
do Espírito Santo, Estevão fitou o céu e viu a glória de Deus e Jesus de pé à
direita de Deus. Então disse: “Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem,
de pé, à direita de Deus”. (At 7,55-56); “Ele manifestou na pessoa de Cristo, ressuscitando-o dos mortos e
fazendo-o sentar à sua direita no céu, muito acima de qualquer principado,
autoridade, poder e soberania, e de qualquer outro nome que se possa nomear,
não só no presente, mas também no futuro.” (Ef 1,20-21).
Porque a direita é o lugar daquele que vem anunciar o
fim de todas as coisas: “Jesus respondeu:
‘É como vocês acabaram de dizer. Além disso, eu digo a vocês: de agora em
diante, vocês verão o Filho do Homem sentado à direita do Todo-poderoso e vindo
sobre as nuvens do céu”. (Mt 26,64).
Porque a
direita é o lugar dos vencedores: “O próprio David, movido pelo Espírito
Santo, disse: ‘O Senhor disse ao meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que
eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés”. (Mc 12,36).
Porque a
direita é o lugar do Salvador de todos os homens: “O Filho, por sua palavra poderosa, é aquele que mantém o universo.
Depois de realizar a purificação dos pecados, sentou-se à direita da Majestade
de Deus nas alturas. Ele está acima dos anjos, da mesma forma que herdou um
nome muito superior ao deles”. (Hb 1,3-4).
Cumprindo, então, a determinação de Jesus, os
discípulos “jogaram a rede, e não conseguiram puxar para fora, de tanto
peixe que pegaram”. (Jo 21, 6b). E não puderam recolher a rede tamanha era
a quantidade de peixes, conforme disse Paulo: “Se Deus está a nosso favor,
quem estará contra nós?” (Rm
8,31). “Tudo posso naquele que me fortalece”. (Fl 4,13).
Eles fizeram algo que, provavelmente, nunca tinham
feito na vida. Sete pescadores experimentados obedecem a um estranho
desconhecido que lhes mandou fazer algo que contrastava com a experiência
deles. Jesus, aquela pessoa desconhecida que estava na praia, mandou que
jogassem a rede do lado direito do barco. Eles obedeceram, jogaram a rede, e
foi um resultado inesperado.
A rede ficou cheia de peixes! Como era possível! Como
explicar esta surpresa fora de qualquer previsão? O amor faz descobrir.
O discípulo amado diz: “É o Senhor!” (Jo
21,7a).
Quem reconhece Jesus primeiro foi o Discípulo Amado -
pois só quem vê com os olhos do amor reconhece e vê além das aparências. Como
tinha sido o amor que o levou a correr mais depressa ao túmulo do que Pedro (Jo
20,3-4), é o amor que faz com que ele seja o primeiro a reconhecer a presença
de Jesus Ressuscitado. Ele é o Discípulo Amado e que ama; Pedro o será somente
depois da sua profissão de amor, quando Jesus lhe perguntar se ele o ama de
verdade (Jo 20,15-17).
O discípulo que Jesus amava é a figura do discípulo
verdadeiro, que vê Jesus na pessoa do necessitado, do que tem fome; é o
primeiro a reconhecer Jesus na pessoa do desconhecido, e ele alerta Pedro.
Esta intuição clareou tudo. Pedro se jogou na água
para chegar mais depressa perto de Jesus: “Simão Pedro, ouvindo dizer que
era o Senhor, vestiu a roupa, pois estava nu, e pulou dentro d’água”. (Jo
21, 7b). Pedro estava nu, vestiu sua roupa e atirou-se ao mar.
Na ausência de Jesus todos estão nus da graça divina. Somente
com a presença de Jesus é que nos recobrimos com sua graça e ficamos
impacientes para alcançá-lo logo.
Os outros discípulos vieram mais devagar com o barco
arrastando a rede cheia de peixes: “Os outros discípulos foram na barca, que
estava a uns cem metros da margem. Eles arrastavam a rede com os peixes.” (Jo
21, 8). Não recolheram a rede na barca, mas a arrastaram até a praia: é a força
de Jesus atraindo a todos para si.
Chegando em terra, viram que Jesus tinha acendido umas
brasas e que estava assando peixe e pão.
Jesus já havia preparado o café da manhã, o desjejum: “Logo
que pisaram em terra firme, viram um peixe na brasa e pão”. (Jo 21, 9). Jesus
teve a delicadeza de preparar algo para comer depois de uma noite frustrada sem
pescar nada. Gesto bem simples que revela algo do amor com que o Pai nos ama
através de Jesus: “Quem vê a mim vê o Pai” (Jo 14,9).
Logo que pisaram a terra viram brasas acesas, e esta
cena evoca a afirmativa de Jesus: “Venham a mim todos os que estão cansados,
que eu os aliviarei.” (Mt 11,28).
De onde surgiu aquele peixe na brasa, se eles ainda
não tinham tirado os peixes da rede?
E o pão na brasa? Jesus pediu que trouxessem mais uns
peixes. Imediatamente, Pedro subiu no barco, arrastou a rede. Contaram cento e
cinquenta e três peixes.
Muito peixe, e a rede não se rompeu. A pesca simboliza
a missão dos discípulos.
Segundo muitos estudiosos, o número de 153 peixes se
baseia no fato de que os zoólogos e naturalistas gregos da antiguidade achavam
que existiam no mundo somente 153 espécies de peixe. Então o Evangelho está
dizendo que a Igreja, segundo o conhecimento da época, (simbolizada pela rede)
pode abraçar o universo inteiro - todos os povos com suas raças e culturas
existentes. A diversidade de culturas, tradições e povos constitui uma riqueza
para a Igreja e não deve levar ao rompimento da unidade, sem que se imponha a
uniformidade (a palavra grega que João usa para "romper" é
"schisma").
A rede estava cheia de 153 grandes peixes: assim, na
rede, estão congregadas todas as famílias humanas na mesma Igreja. A rede não
se rompe – símbolo da unidade da Igreja, ao contrário de Lucas 5,45, onde a
rede se rompe, provocando cisma dentro da Igreja.
Jesus chamou a turma: “Vamos, comam”. (Jo 21,
12).
A Igreja só pode anunciar a boa nova bem alimentada, e
este alimento é a Eucaristia.
Esta refeição patrocinada por Cristo na praia é o
símbolo da Eucaristia. “Nenhum dos
discípulos se atrevia a perguntar quem era ele, pois sabia que era o Senhor”. (Jo
21,12).
E evocando a Eucaristia, o evangelista João completou:
“Jesus se aproximou, tomou o pão e distribuiu para eles”. (Jo 21,13). Sugere
assim que a Eucaristia é o lugar privilegiado para o encontro com Jesus Ressuscitado.
A história toma novo rumo. Sob a direção de Jesus, a pesca é proveitosa. “Essa
foi a terceira vez que Jesus, ressuscitado dos mortos, apareceu aos
discípulos”. (Jo 21,14). Isso sugere que, apesar de ser a terceira vez que
Jesus ressuscitado aparece aos discípulos, eles não o reconheceram, pois o
Ressuscitado é toda e qualquer pessoa carente e necessitada que se nos
apresenta; o rosto de cada irmão ou irmã carente e necessitado, para o cristão,
é o rosto do Cristo Ressuscitado: “Em
verdade eu declaro para vocês: todas as vezes que vocês deixarem de fazer isso
a um destes pequeninos, foi a mim que o deixaram de fazer”. (Mt 25,45). “Todo aquele que der ainda que seja somente
um copo de água fresca a um destes pequeninos, porque é meu discípulo, em
verdade eu lhes digo: não perderá sua recompensa”. (Mt 10,42). Depois da
refeição vem a conversa informal, e Jesus faz as perguntas a Pedro,
perguntando-lhe por três vezes se Pedro o ama, talvez se referindo às
declarações impetuosas de Pedro, e possivelmente, nesse momento, passa na mente
de Pedro o filme das negações que ele fizera para com o Mestre: “Senhor, por
que não posso seguir-te agora? Eu daria a minha própria vida por ti.” “Você
daria a sua vida por mim? Eu lhe garanto: antes que o galo cante, você me
negará três vezes”.” (Jo 13,37-38). “Pedro disse a Jesus: ‘Ainda que
todos fiquem desorientados por tua causa eu jamais ficarei.’ Jesus declarou:
‘Eu garanto a você: esta noite, antes que o galo cante, você me negará três
vezes.’ Pedro respondeu: ‘Ainda que eu tenha de morrer contigo, mesmo assim não
te negarei.’” (Mt 26,33-35; Mc 14,26-31; Lc 22,31-34). “A empregada que
tomava conta da porta, perguntou a Pedro: ‘Você não é também um dos discípulos
desse homem?’ Pedro disse: ‘Eu não’. Simão Pedro ainda estava lá fora se
esquentando. Perguntaram a ele: ‘Você também não é um dos discípulos dele?’
Pedro negou: ‘Eu não.’ Então um dos empregados do sumo sacerdote, parente
daquele a quem Pedro tinha decepado a orelha, disse: ‘Por acaso eu não vi você
no jardim com ele?’ Pedro negou de novo. E, na mesma hora, o galo cantou.”.
(Jo 18,17.25-27).
Depois da conversa informal que, possivelmente tiveram
ao redor do fogo, Jesus se dirige a Pedro: “Simão, filho de João, você me
ama mais do que estes outros?’. Pedro respondeu: “Sim, Senhor, tu sabes que eu
te amo.’ Jesus disse: ‘Cuide de meus cordeiros’.” (Jo 21,15).
Pedro ainda não amava suficientemente a Jesus. O
perfeito amor lança fora o medo: “No amor não existe medo; pelo contrário, o
amor perfeito lança fora o medo, porque o medo supõe castigo. Por conseguinte,
quem sente medo, ainda não está realizado no amor”. (1Jo 4,18).
O amor que Jesus cobrava de Pedro é o amor ágape, é o
amor-que-se-doa, o amor-sacrifício, o amor eterno, imutável e perfeito, como o
amor do Pai: “Pois Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho
único, para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna. De
fato, Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, e sim para
que o mundo se salve por meio dele.” (Jo 3,16-17).
O nó da questão está na entrega da missão a Pedro.
Pedro, a partir de então e definitivamente, deve ser o
Bom Pastor das ovelhas e dos cordeiros que pertencem a Jesus pelo preço de seu
sangue.
As ovelhas não são de Pedro - ele é apenas o Pastor -
as ovelhas pertencem ao Senhor!
Aqui Pedro recebe esta grande missão, que nos Evangelhos
sinóticos havia recebido na estrada de Cesárea de Felipe: “Simão Pedro
respondeu: ‘Tu és o Cristo, o Filho
do Deus vivo’. Jesus disse: ‘Tu és
feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso,
mas o meu Pai que está no céu. Por isso eu te digo: “Tu és Pedro, e
sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno nunca
prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que
ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será
desligado nos céus”. (Mt 16,15-19).
Mas, mais importante do que a sua função, é a sua
vocação de discípulo - aquele que ama o Senhor. Só quem ama Jesus profundamente
poderá pastorear os seus seguidores.
E, a seguir, Jesus faz o prenúncio da morte de Pedro: “Eu
garanto a você: quando você era mais moço, você colocava o cinto e ia para onde
queria. Quando você ficar mais velho, estenderá as suas mãos, e outro colocará
o cinto em você e o levará aonde você não quer ir. Jesus falou isso aludindo ao
tipo de morte com que Pedro iria glorificar a Deus.” (Jo 21, 18-19).
Se, no primeiro capítulo do Evangelho, Pedro veio a
Jesus por mediação do seu irmão André (Jo 1,40-42), agora Pedro recebe o
convite do próprio Mestre: "Quanto a você, siga-me", (Jo 21,22),
pois no amor ele fez a opção pelo discipulado.
Pedro se preocupa com João, o mais moço deles: “Pedro
virou-se e viu atrás de si aquele outro discípulo que Jesus amava, o mesmo que
estivera bem perto de Jesus durante a ceia e que havia perguntado: ‘Senhor,
quem é que vai trair-te?’ Quando Pedro viu aquele discípulo, perguntou a Jesus:
‘Senhor, o que vai acontecer a ele’?
(Jo 21,20-21).
E Pedro é repreendido por Jesus: “Se eu quero que
ele viva até que eu venha, o que é que você tem com isso?” (Jo 21,20-23).
As primeiras palavras de Jesus no Evangelho segundo
João foram: “O que procuram?... venham e verão”. (1,38.39). De maneira
fantástica, são colocadas na boca de Jesus as suas últimas palavras no seu
evangelho: “Quanto a você, siga-me” (Jo 20,22).
Assim, o evangelista, após terminar sua obra, com uma
bem-aventurança para os que creriam sem ver: “Felizes os que acreditaram sem
ter visto”. (20,29), recomeça-a e a conclui, por fim, com um desafio de
Jesus: “Quanto a você, siga-me”. (Jo 21,22).
No final do capítulo 21, o redator repete o que já
fora dito em 20, 30-31, e acrescenta alguma coisa mais: “Jesus fez ainda muitas coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso
que não caberiam no mundo os livros que seriam escritos”. (Jo 21,25).
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