domingo, 26 de março de 2017

O CEGO DE NASCENÇA

IV DOMINGO DA QUARESMA

“ENQUANTO ESTOU NO MUNDO, EU SOU A LUZ DO MUNDO” (Jo 9,5).

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Diácono Milton Restivo

Neste IV Domingo da Quaresma a liturgia da Palavra é muito rica, e seria necessário que fosse meditada uma por uma todas as leituras apresentadas.
A primeira leitura narra a escolha do adolescente pastor Davi para ser o futuro rei de Israel em substituição ao rei Saul que havia, por suas atitudes, desagradado a Yahweh.
Davi é ungido pelo profeta e juiz Samuel para tal finalidade: “Samuel tomou o chifre com óleo e ungiu a Davi na presença de seus irmãos. E a partir daquele dia o espírito do Senhor se apoderou de Davi”. (1Sm 16,13).
O Salmo 22, atribuído ao próprio Davi, é um dos mais belos, mais conhecidos, mais cantados e mais recitados salmos em todo o mundo cristão.
Como o Evangelho de hoje é riquíssimo em ensinamentos, vamos nos ater única e exclusivamente na meditação do Evangelho, que é de João, que é o único que narra esse acontecimento. Ainda que estejamos no Ano A, que é atribuído à leitura do Evangelho de Mateus, vez por outra o Evangelho de João é lido, como o foi no domingo passado na passagem de Jesus com a samaritana.
A passagem do Evangelho de hoje, do homem que é cego de nascença, retrata o único cego de nascença mencionado no Novo Testamento. O evangelista João não cita em seu Evangelho, nenhuma vez, a palavra milagre, e sim, sinal. Deixa claro aos seus leitores que os sinais narrados no seu Evangelho são uma manifestação da glória de Deus para aqueles que estão dispostos a penetrar no mistério de Jesus.
O cego de nascença simboliza a comunidade que não tomou consciência de sua situação de cegueira. Mostra, também, o conflito das autoridades religiosas do tempo de Jesus e de todos os tempos que mantêm o povo na escuridão. 
     Este sinal é o de número seis no Evangelho de João e, como todos os demais, tem por objetivo testificar a divindade de Jesus, o Filho de Deus.
O primeiro sinal foi nas bodas de Caná, na transformação da água em vinho (Jo 2,1-11), simbolizando o amor e a salvação pela Palavra.
O segundo sinal foi a cura do filho de um funcionário real (Jo 4,46-54), simbolizando saúde e a força da fé.
O terceiro sinal foi a cura do paralítico, vítima da exclusão social (Jo 5,1-18), simbolizando solidariedade e graça.
O quarto sinal foi a multiplicação dos pães (Jo 6,1-15), simbolizando a partilha e mostrando que o mundo recebe o Evangelho através dos homens cooperando com Deus.
No quinto sinal Jesus caminha sobre as águas (Jo 6,16-21), retratando o medo e a insegurança dos discípulos quando Jesus está ausente e demonstrando a confiança que Jesus inspira a todos e a paz que advém ao sentirem a presença de Jesus no barco com eles.
O sexto sinal é a cura do cego de nascença (Jo 9,1-41), simbolizando que Jesus é a luz do mundo: “enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo” (Jo 9,5).
E, finalmente, o sétimo sinal, a ressurreição de Lázaro (11,1-44), atestando que Jesus é vida: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). A ressurreição de Lázaro meditaremos no próximo domingo.
Nesta passagem do Evangelho é narrado o episódio do cego de nascença.
O cego é um impotente: não pode curar-se a si próprio. Pela graça, Jesus cura o cego que nada fez por merecer a sua cura. João inicia essa narrativa dizendo que “Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença.” (Jo 9,1).
Jesus continua passando na vida de cada um, e todos continuam cegos ao seu chamado.
A pessoa do cego retrata carência: falta de visão. Desde que nascera aquele homem vivia na escuridão. Pela situação precária em que é apresentado, o cego estava desprovido de estabilidade emocional e financeira e sua situação social era precária, considerando que viva de esmolas.
“Os discípulos perguntaram: ‘Mestre, quem pecou para que ele nascesse cego, ele ou seus pais?”. (Jo, 9,2). Segundo uma concepção muito difundida no mundo antigo e no ponto de vista religioso dos judeus, havia um vínculo estreito entre o pecado e as enfermidades físicas e até a morte: os doentes estavam sendo punidos pelos seus pecados, como foram punidos os egípcios por não querer libertar os israelitas da escravidão (Ex 9,1-12), ou o pecador arrependido que vê a sua doença, possivelmente a lepra, como castigo mandado por Deus por causa de seus pecados (Sl 38,2-6), ou o pecador deveria ser punido com a morte (Ez 18,20).
No caso dos enfermos de nascença, certos rabinos atribuíam o pecado aos seus pais, outros à própria criança que poderia pecar até dentro do ventre da mãe.
Jesus afasta as teorias correntes sem preocupar-se com propor uma nova teoria: Jesus respondeu: ‘Nem ele nem seus pais. “Mas é para que as obras de Deus se manifestem nele”. (Jo, 9,3). Jesus constata o fato da enfermidade e age tendo em vista assegurar a esse homem a sua plena integridade física; assim fazendo realiza um sinal que manifestará aos homens sua origem divina e os convidará a receber a luz verdadeira.
A passagem da visão à cegueira, simboliza a incredulidade e ocasiona a morte da fé e o extermínio da vida. Este cego, que é curado, é o protótipo dos que chegam à fé através da graça, porque Jesus cura o cego que nada fez por merecer a sua cura. Jesus vê no cego de nascença o homem na escuridão, carente da luz da graça: “... enquanto eu estiver no mundo, eu sou a luz do mundo.” (Jo 9,5).
A atividade salvífica do Pai se manifesta em Jesus para o bem de todos os homens; Jesus é a única possibilidade de salvação: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas possuirá a luz da vida” (Jo 8,12); “A luz ainda estará no meio de vocês por pouco tempo. Procurem caminhar enquanto vocês têm a luz, para que as trevas não alcancem vocês. Quem caminha nas trevas não sabe para onde está indo. Enquanto vocês têm a luz, acreditem na luz, para que vocês se tornem filhos da luz”. (12,35).
Jesus, depois de ter esclarecido seus discípulos a respeito de que o cego não havia pecado por ser cego, toma uma atitude: “Tendo assim falado, Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e a aplicou nos olhos do cego, e lhe disse: ‘Vai lavar-te na piscina de Siloé’ – o que significa Enviado.” (Jo 9,6-7).
Na antiguidade, considerava-se que a saliva possuía virtudes curativas. Jesus recorre a um gesto familiar da época e lhe dá uma eficácia nova. Em muitas outras ocasiões Jesus usa a saliva para curar deficiências de audição, visão ou da fala, conforme vemos no Evangelho de Marcos: “Jesus se afastou com o homem para longe da multidão; em seguida pôs o dedo no ouvido do homem cuspiu, e com a sua saliva tocou a língua dele. Depois olhou para o céu, suspirou, e disse: ‘Efatá! ’, que quer dizer: ‘Abra-se’. Imediatamente os ouvidos do homem se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar se dificuldade” (Mc 7,33-35); “Jesus pegou o cego pela mão, levou-o para fora do povoado, cuspiu nos olhos dele, pôs a mão sobre ele...” (Mc 8,23). Depois de ter cuspido no chão, feito lama com sua saliva e aplicado a lama nos olhos do cego de nascença, Jesus lhe diz: “Vai lavar-te na piscina de Siloé’ – o que significa Enviado”. (Jo 9,7b).
A piscina de Siloé estava situada na cidade de Jerusalém (2Rs 20,20; Is 8,6; Ne 3,15). 
João, que atribui grande importância ao tema da salvação, sugere uma etimologia: do mesmo modo como a água da piscina do “Enviado” restitui a vista aos cegos, assim também o Enviado messiânico, que é Jesus, traz a luz da revelação. Talvez se deva ver aqui uma alusão à liturgia batismal. “O cego foi, lavou-se, e voltou enxergando” (Jo 9,7c).
A cura do cego causou surpresa ao povo: “As pessoas da vizinhança e os que antes costumavam vê-lo – pois era um mendigo – diziam: ‘Não é aquele que ficava sentado pedindo esmolas? ’ Uns diziam: ‘ É ele mesmo’. Outros diziam: ‘Não! Deve ser alguém parecido com ele”. Mas o cego afirmava: ‘Sou eu mesmo’. Então eles lhe disseram: ‘Neste caso, como é que se abriam os teus olhos”? (Jo 9,8-10). E o homem, que era cego de nascença, dá o seu testemunho: “Ele respondeu: ‘O homem a quem chamam Jesus fez lama, esfregou-a nos meus olhos e me disse: ‘Vai a Siloé e lava-te. Então eu fui, lavei-me e recuperei a vista.” (Jo 9,11).
Depois de operar essa maravilha, Jesus sai de cena momentaneamente: “Perguntaram ao cego: ‘Onde está esse homem?’ Ele disse: ‘Não sei!”(Jo 9,12).
Havia necessidade de que as autoridades religiosas tomassem conhecimento daquele fato inédito porque, na soberba dessas autoridades, cabia a elas determinarem se Deus podia ou não fazer as suas maravilhas entre os homens: “Então levaram aos fariseus aquele que tinha sido cego. Era sábado o dia em que Jesus fez barro e abriu os olhos do cego. Então os fariseus lhe perguntaram como é que tinha recuperado a vista. Ele disse: ‘Alguém colocou barro nos meus olhos, eu me lavei, e estou enxergando. ’ Então os fariseus disseram: ‘Esse homem não pode vir de Deus; ele não guarda o sábado” (Jo 9,13-16a).
Esse acontecimento atiçou a ira das soberbas autoridades religiosas dos judeus e, a partir daí, os fariseus entram em cena, protestando, porque Jesus havia violado o dia do sábado curando um cego, colocando os rituais religiosos que eles mesmo criaram acima da dignidade e do bem estar básico do homem: “Então os fariseus disseram: ‘Esse homem não pode vir de Deus; ele não guarda o sábado” (Jo 9,16a).
Dizendo que Jesus não era de Deus seria o mesmo que dizer que ele era um pecador, e um pecador não poderia, jamais, operar maravilhas em nome de Deus, e houve até quem comentasse isso: “Mas outros diziam: ‘Como é que um homem pecador teria o poder de operar tais sinais”? (Jo 9,16b). A partir daí até os próprios fariseus, autoridades religiosas dos judeus, passaram a não se entender entre si, “e havia divisão entre eles” (Jo 9,17a).
Não encontrado explicações racionais para a cura do cego, os fariseus não o deixa em paz, e voltam a inquirir o homem que fora cego: “O que você diz do homem que abriu os seus olhos?’ Ele respondeu: ‘É um profeta”. (Jo 9,17b). Ao dizer “é um profeta”, entende-se que é a primeira etapa da interpretação do sinal: Jesus é reconhecido como um profeta, um homem de Deus, dotado de um poder que ultrapassa as possibilidades humanas; os sinais e as ações de Jesus são, conjuntamente, ação do Pai: por conseguinte, os que recusam as declarações, aspirações e atitudes messiânicas de Jesus, manifestam ruptura com Deus. Pois ninguém que não venha de Deus pode fazer os sinais realizados por Jesus.
As autoridades se negavam a crer que o doente, cego de nascença, começara a enxergar, e já não queriam mais conversa com o que era cego, pois ele havia reconhecido em Jesus um profeta.
A partir daí buscam informações com os pais do curado: “As autoridades dos judeus não acreditaram que ele tinha sido cego e que tinha recuperado a vista. Até que chamaram os pais dele e perguntaram: ‘Este é o filho que vocês dizem ter nascido cego? Como é que ele agora está enxergando?’ Os pais disseram: ‘Sabemos que é o nosso filho e que nasceu cego. Como é que ele agora está enxergando, isso não sabemos. Também não sabemos quem foi que abriu os olhos dele”. (Jo 9,18-21a).
Os pais do homem que fora cego, temerosos com a punição que receberiam se admitissem que fora Jesus que havia curado o seu filho da cegueira e serem expulsos da sinagoga, omitem informações e sugerem que as autoridades vão perguntar diretamente ao seu filho o que havia acontecido, considerando que ele já era maior de idade: “Perguntem a ele. Ele é maior de idade e pode dar explicação’. Os pais do cego disseram isso porque tinham medo das autoridades dos judeus, que haviam combinado expulsar da sinagoga quem confessasse que Jesus era o Messias. Foi por isso que os pais disseram: ‘É maior de idade; perguntem a ele’.” (Jo 9,21a-23).
Serem expulsos da sinagoga significava perder amigos e família e todos os benefícios da religião dos judeus. Por isso, covardemente, deixaram de proclamar as maravilhas operadas por Deus através do seu Filho único. E isso aconteceu até com as próprias autoridades dos judeus: “Entretanto, até mesmo entre os chefes dos judeus houve quem acreditasse em Jesus. Mas, por causa dos fariseus, não se atreviam a confessar isso em público, para não serem expulsos da sinagoga. É que eles preferiram a glória humana à glória que vem de Deus” (Jo 12,42-43).
Quantos, hoje, para não perder mordomia, “status”, uma vida confortável, amizades e riquezas, não se atrevem a confessar Jesus para não perder tudo isso, esquecendo do que Jesus dissera: “Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e da Boa Notícia, vai salvá-la. Com efeito, que adianta o homem ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida? Que é que o homem poderia dar em troca da própria vida? Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras diante dessa geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória do seu Pai com seus santos anjos”. (Mc 8,35-38).
As autoridades religiosas dos judeus não se deram por vencidas quanto ao seu intento de desacreditar Jesus perante a opinião pública e a sua persistência volta a procurar o homem que havia sido curado, e insistem com ele: “Confesse a verdade. Nós sabemos que esse homem é um pecador”. O homem não se deixa intimidar, e responde: “Se é pecador, isso eu não sei; só sei que era cego e agora estou enxergando”. As autoridades insistem: “Que é que ele fez? Como foi que abriu seus olhos?” O homem curado perde a paciência e acaba cutucando as autoridades com vara curta: “Eu já lhes disse, e vocês não me escutaram. Porque vocês querem ouvir de novo? Será que também vocês querem ser discípulos dele?”
As autoridades se sentiram ofendidas com isso e retrucam grosseiramente e com prepotência ao homem: “Você é que é discípulo dele. Nós, porém, somos discípulos de Moisés. Sabemos que Deus falou a Moisés, mas quanto a esse homem, nem sabemos de onde ele é”. O homem responde com ironia: “Isso é de admirar! Vocês não sabem de onde ele é. No entanto ele abriu os meus olhos”. E o homem bate de frente com as autoridades contestando aquilo que as autoridades já haviam dito a respeito de Jesus, que Jesus era um pecador porque “esse homem não pode vir de Deus; ele não guarda o sábado” e “nós sabemos que esse homem é um pecador”; e o homem continua sem relutância: “Sabemos que Deus não ouve os pecadores, mas ouve aquele que o respeita e faz a sua vontade. Nunca se ouviu falar que alguém tenha aberto os olhos de um cego de nascença. Se esse homem não vem de Deus, não poderia fazer nada”.
Isso foi a medida para irritar mais as autoridades religiosas que acusaram o homem que fora cego de nascença de haver “nascido inteirinho no pecado” e expulsarem-no de suas presenças e também, de agora em diante, de frequentar a sinagoga (cf Jo 9,24b-34).
Jesus, sabendo do ocorrido, vem ao encontro do homem curado, e lhe pergunta: “Você acredita no Filho do Homem?” (Jo 9,35b). Jesus se revela como sendo o Filho do Homem, isto é, aquele que vem para reunir os homens e elevá-los à participação da vida de Deus e com Deus.  
O homem não sabia de quem Jesus falava, e pergunta: “Quem é ele, Senhor, para que eu acredite nele?”, e Jesus se identifica: “Você o está vendo; é aquele que está falando com você”. O homem não titubeou porque, afinal de contas, era a primeira vez que ele via Jesus, “se ajoelhou diante de Jesus”, e fez a sua profissão de fé: “Eu acredito, Senhor”. Jesus complementa afirmando o motivo pelo qual viera ao mundo: “Eu vim a este mundo para um julgamento, a fim de que aqueles que não vêem vejam, e aqueles que vêem se tornem cegos.” (Jo 9,35b-39).
A missão de Jesus provoca neste mundo uma verdadeira inversão das situações e dos valores.
O lugar mais seguro para o cego curado seria fora da religião dos judeus. Ele fora expulso pelas autoridades religiosas, mas foi aceito por Jesus.
Enquanto as autoridades chamavam Jesus de pecador, de impostor e de perverter a ordem, o homem curado viu em Jesus “o homem que se chama Jesus”, “é um profeta”; “homem de Deus”; “o Filho do Homem e Senhor” (cf Jo 9,11.17.33.38) e, finalmente como Deus, porque “se ajoelhou diante de Jesus”, adorando-o. Os cegos que professam sua fé em Jesus são curados e chegam ao conhecimento da revelação; ao invés, os que se ufanam de serem esclarecidos não se acham em condições de ver aquele que traz a luz da salvação; eles se encerram para sempre nas trevas e na perdição (cf Jo 3, 17-21; Mc 4,11-12).
No final: quem é o verdadeiro cego? A cegueira dos judeus é a recusa de Jesus como o Cristo.

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