IV DOMINGO DA QUARESMA
“ENQUANTO ESTOU NO MUNDO, EU SOU A LUZ
DO MUNDO” (Jo 9,5).
Diácono Milton Restivo
Neste IV Domingo da Quaresma a liturgia da Palavra é
muito rica, e seria necessário que fosse meditada uma por uma todas as leituras
apresentadas.
A primeira leitura narra a escolha do adolescente
pastor Davi para ser o futuro rei de Israel em substituição ao rei Saul que
havia, por suas atitudes, desagradado a Yahweh.
Davi é ungido pelo profeta e juiz Samuel para tal
finalidade: “Samuel tomou o chifre com
óleo e ungiu a Davi na presença de seus irmãos. E a partir daquele dia o
espírito do Senhor se apoderou de Davi”. (1Sm 16,13).
O Salmo 22, atribuído ao próprio Davi, é um dos mais
belos, mais conhecidos, mais cantados e mais recitados salmos em todo o mundo
cristão.
Como o Evangelho de hoje é riquíssimo em ensinamentos,
vamos nos ater única e exclusivamente na meditação do Evangelho, que é de João,
que é o único que narra esse acontecimento. Ainda que estejamos no Ano A, que é
atribuído à leitura do Evangelho de Mateus, vez por outra o Evangelho de João é
lido, como o foi no domingo passado na passagem de Jesus com a samaritana.
A passagem do Evangelho de hoje, do homem que é cego de
nascença, retrata o único cego de nascença mencionado no Novo Testamento. O
evangelista João não cita em
seu Evangelho , nenhuma vez, a palavra milagre, e sim, sinal.
Deixa claro aos seus leitores que os sinais narrados no seu Evangelho são uma
manifestação da glória de Deus para aqueles que estão dispostos a penetrar no
mistério de Jesus.
O cego de nascença simboliza a comunidade que não
tomou consciência de sua situação de
cegueira. Mostra, também, o conflito das autoridades religiosas do tempo de
Jesus e de todos os tempos que mantêm o povo
na escuridão.
Este sinal é o de número seis no Evangelho de João e,
como todos os demais, tem por objetivo testificar a divindade de Jesus, o Filho
de Deus.
O primeiro sinal foi nas bodas de Caná, na
transformação da água em vinho (Jo 2,1-11), simbolizando o amor e a salvação
pela Palavra.
O segundo sinal foi a cura do filho de um funcionário
real (Jo 4,46-54), simbolizando saúde e a força da fé.
O terceiro sinal foi a cura do paralítico, vítima da
exclusão social (Jo 5,1-18), simbolizando solidariedade e graça.
O quarto sinal foi a multiplicação dos pães (Jo
6,1-15), simbolizando a partilha e mostrando que o mundo recebe o Evangelho
através dos homens cooperando com Deus.
No quinto sinal Jesus caminha sobre as águas (Jo
6,16-21), retratando o medo e a insegurança dos discípulos quando Jesus está
ausente e demonstrando a confiança que Jesus inspira a todos e a paz que advém
ao sentirem a presença de Jesus no barco com eles.
O sexto sinal é a cura do cego de nascença (Jo 9,1-41),
simbolizando que Jesus é a luz do mundo: “enquanto
estou no mundo, eu sou a luz do mundo”
(Jo 9,5).
E, finalmente, o sétimo sinal, a ressurreição de
Lázaro (11,1-44), atestando que Jesus é vida: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
A ressurreição de Lázaro meditaremos no próximo domingo.
Nesta passagem do Evangelho é narrado o episódio do
cego de nascença.
O cego é um impotente: não pode curar-se a si próprio.
Pela graça, Jesus cura o cego que nada fez por merecer a sua cura. João inicia
essa narrativa dizendo que “Ao passar,
Jesus viu um homem cego de nascença.” (Jo 9,1).
Jesus continua passando na vida de cada um, e todos
continuam cegos ao seu chamado.
A pessoa do cego retrata carência: falta de visão.
Desde que nascera aquele homem vivia na escuridão. Pela situação precária em
que é apresentado, o cego estava desprovido de estabilidade emocional e
financeira e sua situação social era precária, considerando que viva de
esmolas.
“Os discípulos
perguntaram: ‘Mestre, quem pecou para que ele nascesse cego, ele ou seus pais?”.
(Jo, 9,2). Segundo uma concepção muito difundida no mundo antigo e no ponto
de vista religioso dos judeus, havia um vínculo estreito entre o pecado e as
enfermidades físicas e até a morte: os doentes estavam sendo punidos pelos seus
pecados, como foram punidos os egípcios por não querer libertar os israelitas
da escravidão (Ex 9,1-12), ou o pecador arrependido que vê a sua doença,
possivelmente a lepra, como castigo mandado por Deus por causa de seus pecados
(Sl 38,2-6), ou o pecador deveria ser punido com a morte (Ez 18,20).
No caso dos enfermos de nascença, certos rabinos
atribuíam o pecado aos seus pais, outros à própria criança que poderia pecar
até dentro do ventre da mãe.
Jesus afasta as teorias correntes sem preocupar-se com
propor uma nova teoria: “Jesus
respondeu: ‘Nem ele nem seus pais. “Mas é para que as obras de Deus se
manifestem nele”. (Jo, 9,3). Jesus constata o fato da enfermidade e age
tendo em vista assegurar a esse homem a sua plena integridade física; assim
fazendo realiza um sinal que manifestará aos homens sua origem divina e os
convidará a receber a luz verdadeira.
A passagem da visão à cegueira, simboliza a
incredulidade e ocasiona a morte da fé e o extermínio da vida. Este cego, que é
curado, é o protótipo dos que chegam à fé através da graça, porque Jesus cura o
cego que nada fez por merecer a sua cura. Jesus vê no cego de nascença o homem
na escuridão, carente da luz da graça: “...
enquanto eu estiver no mundo, eu sou a
luz do mundo.” (Jo 9,5).
A atividade salvífica do Pai se manifesta em Jesus
para o bem de todos os homens; Jesus é a única possibilidade de salvação: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não
andará nas trevas, mas possuirá a luz da vida” (Jo 8,12); “A luz ainda estará no meio de vocês por
pouco tempo. Procurem caminhar enquanto vocês têm a luz, para que as trevas não
alcancem vocês. Quem caminha nas trevas não sabe para onde está indo. Enquanto
vocês têm a luz, acreditem na luz, para que vocês se tornem filhos da luz”.
(12,35).
Jesus, depois de ter esclarecido seus discípulos a
respeito de que o cego não havia pecado por ser cego, toma uma atitude: “Tendo assim falado, Jesus cuspiu no chão,
fez lama com a saliva e a aplicou nos olhos do cego, e lhe disse: ‘Vai lavar-te
na piscina de Siloé’ – o que significa Enviado.” (Jo 9,6-7).
Na antiguidade, considerava-se que a saliva possuía
virtudes curativas. Jesus recorre a um gesto familiar da época e lhe dá uma
eficácia nova. Em muitas outras ocasiões Jesus usa a saliva para curar
deficiências de audição, visão ou da fala, conforme vemos no Evangelho de
Marcos: “Jesus se afastou com o homem
para longe da multidão; em seguida pôs o dedo no ouvido do homem cuspiu, e com
a sua saliva tocou a língua dele. Depois olhou para o céu, suspirou, e disse: ‘Efatá!
’, que quer dizer: ‘Abra-se’. Imediatamente os ouvidos do homem se abriram, sua
língua se soltou e ele começou a falar se dificuldade” (Mc 7,33-35); “Jesus pegou o cego pela mão, levou-o para
fora do povoado, cuspiu nos olhos dele, pôs a mão sobre ele...” (Mc 8,23). Depois
de ter cuspido no chão, feito lama com sua saliva e aplicado a lama nos olhos
do cego de nascença, Jesus lhe diz: “Vai
lavar-te na piscina de Siloé’ – o que significa Enviado”. (Jo 9,7b).
A piscina de Siloé estava situada na cidade de
Jerusalém (2Rs 20,20; Is 8,6; Ne 3,15).
João, que atribui grande importância ao tema da
salvação, sugere uma etimologia: do mesmo modo como a água da piscina do “Enviado” restitui a vista aos cegos,
assim também o Enviado messiânico, que é Jesus, traz a luz da revelação. Talvez
se deva ver aqui uma alusão à liturgia batismal. “O cego foi, lavou-se, e voltou enxergando” (Jo 9,7c).
A cura do cego causou surpresa ao povo: “As pessoas da vizinhança e os que antes
costumavam vê-lo – pois era um mendigo – diziam: ‘Não é aquele que ficava
sentado pedindo esmolas? ’ Uns diziam: ‘ É ele mesmo’. Outros diziam: ‘Não!
Deve ser alguém parecido com ele”. Mas o cego afirmava: ‘Sou eu mesmo’. Então
eles lhe disseram: ‘Neste caso, como é que se abriam os teus olhos”? (Jo
9,8-10). E o homem, que era cego de nascença, dá o seu testemunho: “Ele respondeu: ‘O homem a quem chamam Jesus
fez lama, esfregou-a nos meus olhos e me disse: ‘Vai a Siloé e lava-te. Então
eu fui, lavei-me e recuperei a vista.” (Jo 9,11).
Depois de operar essa maravilha, Jesus sai de cena
momentaneamente: “Perguntaram ao cego:
‘Onde está esse homem?’ Ele disse: ‘Não sei!”(Jo 9,12).
Havia necessidade de que as autoridades religiosas
tomassem conhecimento daquele fato inédito porque, na soberba dessas
autoridades, cabia a elas determinarem se Deus podia ou não fazer as suas
maravilhas entre os homens: “Então
levaram aos fariseus aquele que tinha sido cego. Era sábado o dia em que Jesus fez barro e
abriu os olhos do cego. Então os fariseus lhe perguntaram como é que tinha
recuperado a vista. Ele disse: ‘Alguém colocou barro nos meus olhos, eu me
lavei, e estou enxergando. ’ Então os fariseus disseram: ‘Esse homem não pode
vir de Deus; ele não guarda o sábado” (Jo 9,13-16a).
Esse acontecimento atiçou a ira das soberbas autoridades
religiosas dos judeus e, a partir daí, os fariseus entram em cena, protestando,
porque Jesus havia violado o dia do sábado curando um cego, colocando os
rituais religiosos que eles mesmo criaram acima da dignidade e do bem estar
básico do homem: “Então os fariseus
disseram: ‘Esse homem não pode vir de Deus; ele não guarda o sábado” (Jo 9,16a).
Dizendo que Jesus não era de Deus seria o mesmo que
dizer que ele era um pecador, e um pecador não poderia, jamais, operar maravilhas
em nome de Deus, e houve até quem comentasse isso: “Mas outros diziam: ‘Como é que um homem pecador teria o poder de
operar tais sinais”? (Jo 9,16b). A partir daí até os próprios fariseus,
autoridades religiosas dos judeus, passaram a não se entender entre si, “e havia divisão entre eles” (Jo 9,17a).
Não encontrado explicações racionais para a cura do
cego, os fariseus não o deixa em paz, e voltam a inquirir o homem que fora
cego: “O que você diz do homem que abriu
os seus olhos?’ Ele respondeu: ‘É um profeta”. (Jo 9,17b). Ao dizer “é um profeta”, entende-se que é a
primeira etapa da interpretação do sinal: Jesus é reconhecido como um profeta, um
homem de Deus, dotado de um poder que ultrapassa as possibilidades humanas; os
sinais e as ações de Jesus são, conjuntamente, ação do Pai: por conseguinte, os
que recusam as declarações, aspirações e atitudes messiânicas de Jesus,
manifestam ruptura com Deus. Pois ninguém que não venha de Deus pode fazer os
sinais realizados por Jesus.
As autoridades se negavam a crer que o doente, cego de
nascença, começara a enxergar, e já não queriam mais conversa com o que era
cego, pois ele havia reconhecido em Jesus um profeta.
A partir daí buscam informações com os pais do curado:
“As autoridades dos judeus não
acreditaram que ele tinha sido cego e que tinha recuperado a vista. Até que
chamaram os pais dele e perguntaram: ‘Este é o filho que vocês dizem ter
nascido cego? Como é que ele agora está enxergando?’ Os pais disseram: ‘Sabemos
que é o nosso filho e que nasceu cego. Como é que ele agora está enxergando,
isso não sabemos. Também não sabemos quem foi que abriu os olhos dele”. (Jo
9,18-21a).
Os pais do homem que fora cego, temerosos com a
punição que receberiam se admitissem que fora Jesus que havia curado o seu
filho da cegueira e serem expulsos da sinagoga, omitem informações e sugerem
que as autoridades vão perguntar diretamente ao seu filho o que havia
acontecido, considerando que ele já era maior de idade: “Perguntem a ele. Ele é maior de idade e pode dar explicação’. Os pais
do cego disseram isso porque tinham medo das autoridades dos judeus, que haviam
combinado expulsar da sinagoga quem confessasse que Jesus era o Messias. Foi
por isso que os pais disseram: ‘É maior de idade; perguntem a ele’.” (Jo 9,21a-23).
Serem expulsos da sinagoga significava perder amigos e
família e todos os benefícios da religião dos judeus. Por isso, covardemente,
deixaram de proclamar as maravilhas operadas por Deus através do seu Filho
único. E isso aconteceu até com as próprias autoridades dos judeus: “Entretanto, até mesmo entre os chefes dos
judeus houve quem acreditasse em
Jesus. Mas , por causa dos fariseus, não se atreviam a
confessar isso em público, para não serem expulsos da sinagoga. É que eles preferiram a glória humana à glória
que vem de Deus” (Jo 12,42-43).
Quantos, hoje, para não perder mordomia, “status”, uma
vida confortável, amizades e riquezas, não se atrevem a confessar Jesus para
não perder tudo isso, esquecendo do que Jesus dissera: “Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua
vida por causa de mim e da Boa Notícia, vai salvá-la. Com efeito, que adianta o
homem ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida? Que é que o homem
poderia dar em troca da própria vida? Se alguém se envergonhar de mim e das
minhas palavras diante dessa geração adúltera e pecadora, também o Filho do
Homem se envergonhará dele, quando vier na glória do seu Pai com seus santos
anjos”. (Mc 8,35-38).
As autoridades religiosas dos judeus não se deram por
vencidas quanto ao seu intento de desacreditar Jesus perante a opinião pública
e a sua persistência volta a procurar o homem que havia sido curado, e insistem
com ele: “Confesse a verdade. Nós sabemos
que esse homem é um pecador”. O homem não se deixa intimidar, e responde: “Se é pecador, isso eu não sei; só sei que
era cego e agora estou enxergando”. As autoridades insistem: “Que é que ele fez? Como foi que abriu seus
olhos?” O homem curado perde a paciência e acaba cutucando as autoridades
com vara curta: “Eu já lhes disse, e
vocês não me escutaram. Porque vocês querem ouvir de novo? Será que também
vocês querem ser discípulos dele?”
As autoridades se sentiram ofendidas com isso e
retrucam grosseiramente e com prepotência ao homem: “Você é que é discípulo dele. Nós, porém, somos discípulos de Moisés.
Sabemos que Deus falou a Moisés, mas quanto a esse homem, nem sabemos de onde
ele é”. O homem responde com ironia: “Isso
é de admirar! Vocês não sabem de onde ele é. No entanto ele abriu os meus
olhos”. E o homem bate de frente com as autoridades contestando aquilo que
as autoridades já haviam dito a respeito de Jesus, que Jesus era um pecador
porque “esse homem não pode vir de Deus;
ele não guarda o sábado” e “nós
sabemos que esse homem é um pecador”; e o homem continua sem relutância: “Sabemos que Deus não ouve os pecadores, mas
ouve aquele que o respeita e faz a sua vontade. Nunca se ouviu falar que alguém
tenha aberto os olhos de um cego de nascença. Se esse homem não vem de Deus,
não poderia fazer nada”.
Isso foi a medida para irritar mais as autoridades
religiosas que acusaram o homem que fora cego de nascença de haver “nascido inteirinho no pecado” e
expulsarem-no de suas presenças e também, de agora em diante, de frequentar a
sinagoga (cf Jo 9,24b-34).
Jesus, sabendo do ocorrido, vem ao encontro do homem
curado, e lhe pergunta: “Você acredita no
Filho do Homem?” (Jo 9,35b). Jesus se revela como sendo o Filho do Homem,
isto é, aquele que vem para reunir os homens e elevá-los à participação da vida
de Deus e com Deus.
O homem não sabia de quem Jesus falava, e pergunta: “Quem é ele, Senhor, para que eu acredite
nele?”, e Jesus se identifica: “Você
o está vendo; é aquele que está falando com você”. O homem não titubeou
porque, afinal de contas, era a primeira vez que ele via Jesus, “se ajoelhou diante de Jesus”, e fez a
sua profissão de fé: “Eu acredito,
Senhor”. Jesus complementa afirmando o motivo pelo qual viera ao mundo: “Eu vim a este mundo para um julgamento, a
fim de que aqueles que não vêem vejam, e aqueles que vêem se tornem cegos.” (Jo
9,35b-39).
A missão de Jesus provoca neste mundo uma verdadeira
inversão das situações e dos valores.
O lugar mais seguro para o cego curado seria fora da
religião dos judeus. Ele fora expulso pelas autoridades religiosas, mas foi aceito
por Jesus.
Enquanto as autoridades chamavam Jesus de pecador, de
impostor e de perverter a ordem, o homem curado viu em Jesus “o homem que se chama Jesus”, “é um
profeta”; “homem de Deus”; “o Filho do Homem e Senhor” (cf Jo
9,11.17.33.38) e, finalmente como Deus, porque “se ajoelhou diante de Jesus”, adorando-o. Os cegos que professam
sua fé em Jesus são curados e chegam ao conhecimento da revelação; ao invés, os
que se ufanam de serem esclarecidos não se acham em condições de ver aquele que
traz a luz da salvação; eles se encerram para sempre nas trevas e na perdição
(cf Jo 3, 17-21; Mc 4,11-12).
No final: quem é o verdadeiro cego? A cegueira dos
judeus é a recusa de Jesus como o Cristo.
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