O
POVO TEM PODER DE ESCOLHER SEU BISPO E DESTITUIR O BISPO INDIGNO
“A Igreja do século III tinha
uma mentalidade segundo a qual a Igreja estava mais
na comunidade que no clero. O que não significava atentar contra os direitos do
clero, mas simplesmente reconhecer o papel que a comunidade de fiéis
desempenhava e os direitos que possuía”, escreve José Maria Castillo,
teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital,
28-05-2019. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Não nos damos conta de que, em coisas muito importantes,
a cultura e a sociedade mudam a uma velocidade que a Igreja não
é capaz de acompanhar? É um fato, por exemplo, que há padres jovens que
olham mais para o passado que convém a suas ideias conservadoras que ao futuro
que os interpela.
Há mais de quarenta anos, eu ensinava a meus alunos que,
no século III (no outono de 254), os cristãos da Espanha romana
apresentaram ao bispo Cipriano (o mais importante
daquele momento, ainda que estivesse em Cartago) um
problema complicado.
Tal problema consistia em que os fiéis de três dioceses
espanholas (León, Astorga e Mérida)
tinham ficado sabendo que seus bispos não haviam dado o devido testemunho de
sua fé, em uma perseguição do imperador Décio. E aqueles
fiéis, diante do exemplo escandaloso de seus bispos, tomaram a decisão
(impensável agora) de destituir os bispos, lançá-los na rua e depô-los de seus
cargos.
Naquele tempo, os cristãos se sentiam responsáveis por
suas dioceses e não toleravam o escândalo de bispos que não eram capazes de
confessar sua fé em Jesus Cristo, quando se viam ameaçados. Sendo assim, os
cristãos foram até o bispo mais reconhecido e exemplar no momento, que
era Cipriano de Cartago.
Tudo se complicou quando um dos bispos depostos, um
tal Basílides, recorreu ao Papa Estevão, bispo
de Roma. Contudo, valeu-se de uma informação manipulada,
na qual o assunto era apresentado conforme convinha a Basílides. Desse modo, a
questão ficou complicada. E foi isto que motivou o recurso dos cristãos da
Espanha romana ao bispo Cipriano, o mais reconhecido e
respeitado da Igreja daquele momento.
Cipriano convocou
um concílio, cujas decisões nos chegaram na carta 67 de Cipriano,que
é assinada por 37 bispos que participaram daquele sínodo. Esta solução para um
conflito local era perfeitamente aceita no século III.
Desse modo, naquele sínodo local, foram tomadas três
decisões, que constam na carta mencionada:
1) O
povo tem poder para escolher seus ministros, concretamente o bispo: “Vemos que
tem origem divina escolher o bispo na presença do povo, à vista de todos...
Deus manda que o bispo seja eleito diante da assembleia” (Epist. 67, IV, 1-2).
2) O
povo tem poder para destituir o bispo indigno: “Portanto, o povo... deve se
afastar do bispo pecador e não se misturar no sacrifício de um bispo sacrílego,
quando sobretudo, tem poder de eleger bispos dignos ou de rejeitar os indignos”
(Epist. 67, III, 2).
3) Até
mesmo o recurso a Roma não deve mudar a situação, quando o recurso não se fez
com verdade e sinceridade: “E não se pode anular a eleição verificada com todo
o direito, por Basílides... ter ido a Roma e
enganado nosso colega Estevão que, por estar longe,
não está informado da verdade dos fatos, e ter sido restabelecido de forma
ilegítima em sua sede, da qual havia sido deposto com todo direito” (Epist. 67,
5,3).
Fica patente, portanto, que a Igreja do século III tinha
uma mentalidade segundo a qual a Igreja estava mais na comunidade que no clero.
O que não significava atentar contra os direitos do clero, mas simplesmente
reconhecer o papel que a comunidade de fiéis desempenhava e os direitos que
possuía.
Sendo assim, se a Igreja dos primeiros séculos se
comportava e era gerida desta maneira, por qual razão, com o passar dos
séculos, foi retirado da comunidade dos fiéis um direito que possuiu em suas
origens mais antigas e originais?
E que fique claro que, ao apresentar esta pergunta, não
se trata – de maneira alguma – de limitar os direitos e poderes do bispo de
Roma. Muito pelo contrário. O que mais deve nos importar é o que o Papa atual,
o Papa Francisco, mais deseja: recuperar a dignidade,
autoridade e grandeza de um Papa que não deseja, nem
quer poderes e grandeza, mas, sim, uma Igreja na qual todos os fiéis cristãos
sintam e vivam como um problema de todos aquilo que nos devolverá a força
evangélica de uma Igreja, que não quer grandezas humanas, mas a eficácia
evangélica da comunidade dos seguidores de Jesus, o Senhor.
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