domingo, 23 de abril de 2017

“A PAZ ESTEJA COM VOCÊS” (Jo 20,19).

II DOMINGO DA PÁSCOA - 01.05.2011

“A PAZ ESTEJA COM VOCÊS” (Jo 20,19).

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Diácono Milton Restivo

Neste domingo, chamado “in albis”, ou seja, “domingo das vestes brancas” ou da Divina Misericórdia, a liturgia acentua a nova existência do cristão regenerado pelo batismo ou pela renovação das promessas batismais que foram feitas na cerimônia da Vigília Pascal.
Na igreja primitiva o batismo, principalmente dos adultos, acontecia na vigília do domingo da Páscoa. No domingo seguinte, que seria o segundo domingo da Páscoa, os neocatecúmenos já podiam participar da Eucaristia e, para tanto, se apresentavam para as liturgias da Palavra e da Eucaristia vestidos com vestes brancas que foram recebidas no seu batismo.
No domingo seguinte da Páscoa Jesus se apresenta ressuscitado aos seus discípulos, criando e fortalecendo, no Espírito, a primeira comunidade cristã.
A primeira leitura, tirada do livro dos Atos dos Apóstolos, mostra que as primeiras comunidades cristãs, já em plena atividade e evidência, transmitem o testemunho do Ressuscitado.
Os novos cristãos “eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, no partir do pão e nas orações”. (At 2,42). Nessa atitude dos primeiros cristãos está o alicerce sólido da igreja de Jesus Cristo: 1) perseverança na fé; 2) perseverança ao ouvir a Palavra transmitida pelos Apóstolos; 3) perseverança na comunhão fraterna; 4) perseverança no partir o pão; 5) perseverança na oração. O jeito cristão de viver é ser perseverante e participante da comunidade dos irmãos. 
       Interessante que, antes de ser citado o “partir o pão”, o escritor sagrado diz que os cristãos ouviam os ensinamentos dos Apóstolos porque não pode haver o “partir o pão” se não houver antes a partilha da Palavra. Da mesma maneira que o Cristo está no “partir o pão”, na Eucaristia, o Cristo está na Palavra, como dizia Agostinho, bispo de Hipona (354-430): “a Palavra de Cristo não é menos que o Corpo de Cristo” e “bebe-se o Cristo no cálice das Escrituras como no cálice Eucarístico”. Parafraseando Agostinho, a Palavra não é menos que a Eucaristia porque, da mesma forma que o Cristo está na Palavra e é a Palavra, o Cristo está na Eucaristia e é a Eucaristia. Não pode alimentar-se da Eucaristia aquele que não se alimentou da Palavra. Assim era a igreja primitiva: primeiro alimentava-se da Palavra para depois alimentar-se da Eucaristia, considerando que o Cristo está integralmente na Palavra, porque ele é a Palavra, como está na Eucaristia.
O livro da Sabedoria afirma que tudo foi criado pela Palavra do Senhor: “Deus dos pais e Senhor de misericórdia, tudo criaste com a tua Palavra” (Sb 9,1). Não haveria Eucaristia se não existisse a Palavra porque “no começo a Palavra já existia. [...] Tudo foi feito por meio dela, e de tudo o que existe, nada foi feito sem ela” (Jo 1,1.3). Antes de alimentar o povo com o pão, Jesus alimentou-o com a Palavra, como disse Ambrósio, bispo de Milão (340-397), ao comentar sobre a multiplicação dos pães: “... Jesus deu suas palavras como pão”.
Não há como celebrar a Eucaristia sem antes celebrar a Palavra, e a Eucaristia é fruto da Palavra, pois não haveria Eucaristia se o presbítero não repetisse as Palavras de Jesus da última ceia, quando disse: “façam isso em memória de mim” (Lc 22,19; 1Cor 11,25). O mesmo respeito e veneração que se deve à Eucaristia, deve-se à Palavra.
Moisés, ao instruir o povo no deserto, alertava que “o homem não vive só de pão, mas que o homem vive de tudo aquilo que sai da boca de Yahweh” (Dt 8,3b), ou seja, da Palavra de Yahweh, o que foi corroborado por Jesus em resposta ao tentador no deserto, quando o maligno sugerira que ele transformasse pedras em pão: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4). Ainda no Antigo Testamento o profeta Amós já falava de uma fome que não seria de pão e nem sede que seria de água, e sim fome de ouvir a Palavra de Yahweh: “Dias virão – oráculo de Yahweh -, em que vou mandar a fome sobre o país: não será fome de pão, nem sede de água, e sim fome de ouvir a palavra de Yahweh” (Am 8,11).
Quem ouve e persevera na Palavra, persevera na união entre os irmãos, participa, como família de Deus, da Eucaristia e se torna assíduo na oração que é uma prática diária ensinada por Jesus. A oração comunitária coloca o cristão em atitude de vigilância e de prontidão frente à vontade de Deus. Uma igreja que não ora não tem fé, não tem amor nem esperança. O escritor sagrado diz que, os primeiros cristãos, fazendo isso, “eram estimados por todo o povo” (At 2,47). O modelo de vida comunitário, participativo e de partilha, com certeza, atrai a atenção até dos que não são cristãos. Quando a exigência evangélica é levada a sério, a comunidade se torna luz, sal e fermento de transformação no mundo.
Pedro, na segunda leitura, evoca a misericórdia de Deus por ter ressuscitado Jesus Cristo dos mortos e que, através do batismo, “nos fez nascer para uma esperança viva, para uma herança que não se corrompe, não se mancha e não murcha” (1Pd 1,3b-4a). Pedro enaltece os primeiros cristãos pela fé que demonstravam no Cristo Ressuscitado, exaltação que transpira na Igreja de Jesus Cristo e atinge os cristãos de todos os tempos: “Então, por esta fé, vocês receberão louvor, honra e glória. Vocês nunca viram Jesus e, apesar disso, o amam; não o vêem, mas acreditam. E por isso sentem alegria extraordinária e gloriosa, porque alcançam a meta da fé, que é a salvação de vocês”. (1Pd 1,7b-9). A fé é o compromisso permanente com Cristo, até a morte.
Algumas narrativas do Evangelho de João evocam a criação do mundo como, por exemplo, no início do Evangelho, capítulo 1, quando diz que “no começo a Palavra já existia: a Palavra estava voltada para Deus, e a Palavra era Deus. Tudo foi feito por meio dela, e de tudo o que existe nada foi feito sem ela” (Jo 1,1-3), deixando transparecer ai a criação de tudo o que existe através da Palavra. O Evangelho de hoje narra a primeira manifestação do Ressuscitado aos seus discípulos e sugere uma nova criação no Espírito. A Ressurreição é a nova criação.
Como na criação do mundo, que tudo era um caos, a situação dos discípulos era um verdadeiro caos. O medo imperava. A falta de coragem e do testemunho transpirava por todos os poros. Como no início do mundo, quando as trevas cobriam o abismo (cf Gn 1,2), as trevas da incerteza e da sensação de abandono cobriam os corações dos discípulos e apóstolos que se mantinham escondidos numa sala com as portas fechadas por medo das autoridades dos judeus.
Na criação do mundo a primeira providência do Criador foi a de que existisse a luz, “e a luz começou a existir” (Gn 1,3), e a luz expulsou a escuridão, as trevas. Para dissipar as trevas reinantes entre os discípulos “... Jesus entrou, ficou no meio deles, e disse: ‘A paz esteja com vocês”. (Jo 20,19b). Jesus já havia dito: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas possuirá a luz da vida” (Jo 8,12). Jesus é a luz da nova criação. A luz que veio para por fim às trevas, por ordem no caos reinante, exterminar o medo, a apatia e a covardia. Na criação do homem o Criador “soprou-lhe nas narinas um sopro de vida” (Gn 2,7). Da mesma maneira, na nova criação, o Ressuscitado “soprou sobre eles, dizendo: ‘recebam o Espírito Santo” (Jo 20,22b).
O Espírito Santo é o sopro de Deus, é o sopro da vida, e o mesmo Espírito que o Criador dispensara para que o primeiro homem se tornasse um “ser vivente”, este mesmo Espírito Jesus derrama sobre seus apóstolos para dar-lhes a vida da fé e do testemunho do Ressuscitado.
A presença de ressuscitado tem a força de recriar as criaturas. A paz é restabelecida. Novamente é dado o Espírito. Essa nova criação acontece a partir de Jesus transmitir aos seus apóstolos a continuação de sua missão a de “tirar o pecado do mundo”: “Os pecados daqueles que vocês perdoarem, serão perdoados. Os pecados daqueles que vocês não perdoarem, não serão perdoados”. (Jo 20,23).
Neste primeiro contato do Ressuscitado, por duas vezes, Jesus proclama o seu desejo para a comunidade dos seus discípulos: “A paz esteja com vocês”. Com certeza, Jesus teria dito “Shalôm”, que foi traduzido para na nossa língua simplesmente como “paz”, o que empobreceu sobremaneira o significado verdadeiro de “Shalôm”. A palavra hebraica “Shalôm” é de um conteúdo tão rico que dificilmente pode traduzir-se para outra língua. Só no Antigo Testamento ela foi traduzida de vinte e cinco modos diferentes, e nenhum conseguiu transmitir realmente o seu verdadeiro significado. Prevaleceu, portanto, “paz”. Shalôm é o desejo de prosperidade tanto dos bens materiais como espirituais; boas relações entre pessoas, família, povo; relacionamento perfeito entre Deus e o homem. A saudação Shalôm era usada pelos mensageiros de Yahweh e significava, sobretudo, que Deus conferia uma graça especial e que já não estava mais irado e que tinha compaixão da pessoa assim saudada. Shalôm expressa o melhor desejo que se pode ter em relação a uma pessoa: estima-se a paz, a harmonia, o melhor que se pode desejar a alguém.  Shalôm é a paz que vem da presença de Deus, da justiça do Reino, e não das armas. Jesus não promete a paz do comodismo, mas pelo contrário, envia os seus discípulos na missão árdua em favor do Reino, mas promete o Shalôm, pois ele nunca abandonará quem procura viver na fidelidade ao projeto de Deus: “A paz esteja com vocês. Como o Pai me enviou, também eu envio vocês”. (Jo 20,21). Não é simplesmente uma saudação, mas é o Shalôm, é a paz que ele tinha prometido quando os discípulos se encontravam aflitos por causa de sua partida. Jesus aparece aos discípulos desejando-lhes a paz.
Estavam trancadas as portas por medo dos judeus. Jesus ignora as portas trancadas e se coloca no meio deles não só porque possui agora um corpo ressuscitado, mas também para dizer-lhes que eles devem superar o medo da perseguição, da incompreensão, da decepção e da morte.
Para o Ressuscitado não existem portas fechadas que o impeçam de entrar, ou obstáculos que coíbem a sua caminhada, ou contratempos que dificultam a sua missão. Cristo venceu a morte, e Paulo afirma: “a morte foi engolida pela vitória” e ironiza a morte, personificando-a em um diálogo, “morte, onde está sua vitória”? (1Cor 15,54b-55).
“Assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês” (Jo 20,21). O envio dos Apóstolos é relacionado ao envio de Jesus da parte do Pai. Fica claro que a Igreja é a continuadora da missão de Jesus. A Igreja não tem outra missão na terra a não ser a de continuar a obra de Jesus. E essa doce missão evangelizadora da Igreja só pode ser cumprida na força do Espírito Santo. Por isso, “Jesus soprou sobre eles, dizendo: ‘Recebam o Espírito Santo”. (Jo 20,22).
Sem o Espírito Santo de Cristo, a Igreja seria instituição meramente humana. E Jesus continua, dizendo: “Os pecados daqueles que vocês perdoarem, serão perdoados. Os pecados daqueles que vocês não perdoarem, não serão perdoados” (Jo 20,23). Jesus delega aos seus discípulos e apóstolos a missão de serem embaixadores da sua própria missão, e é em nome de Cristo que todos são convidados a espargir o perdão, a misericórdia, a fraternidade, a paz, a justiça, o amor, tudo baseado na pessoa de Jesus Ressuscitado.
Para esta missão Jesus sopra sobre os discípulos o Espírito Santo. Este gesto recorda o sopro de Deus na criação do homem que dá a vida ao homem. O sopro de Jesus sobre os discípulos é o sinal de uma nova criação: “Recebam o Espírito Santo!”. Jesus soprou sobre os discípulos, como Deus fez sobre Adão (Gn 2,7) quando infundiu nele o espírito de vida; Jesus os recria com e no Espírito Santo: “E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: ‘Recebam o Espírito Santo. A quem vocês perdoarem os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoarem, eles lhes serão retidos”. (Jo 20,22-23). Esta foi a narração do Pentecostes no Evangelho de João.
Nesta sua primeira manifestação Jesus derrama sobre seus discípulos a força do Espírito Santo que ele havia prometido durante toda a sua vida pública: “E eu rogarei ao Pai, e ele lhes dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre com vocês, o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; vocês o conhecem, porque ele habita com vocês e estará em vocês.” [...] “Isto tenho dito a vocês, estando ainda com vocês; mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse ensinará a vocês todas as coisas e fará vocês se lembrarem de tudo o que tenho dito a vocês.” (Jo 14,12-17.25-26); “Quando, porém, vier o Consolador, que eu enviarei a vocês da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim; e vocês também testemunharão, porque vocês estão comigo desde o princípio.” (Jo 15, 26-27). Para João o dom do Espírito, que pela sua natureza é invisível, flui da glorificação de Jesus, da sua volta ao Pai.
Enquanto que, nos escritos de Lucas, o Pentecostes acontece cincoenta dias depois da Páscoa e da Ressurreição de Jesus e dez dias depois de sua ascensão (At 2,1-4), no evangelho de João o Pentecostes acontece na primeira manifestação de Jesus aos seus discípulos que aconteceu ao anoitecer do próprio dia de sua ressurreição, ou seja, no “primeiro dia da semana”.
Nesta manifestação de Jesus o apóstolo Tomé estava ausente, e colocou dúvidas a respeito:
‘Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado direito, não acreditarei’.”
(Jo 20,24-25).
Para todos nós, desde todos os tempos, o nome do Apóstolo Tomé está relacionado com a dúvida e a incredulidade. A passagem da incredulidade de Tomé todos a conhecemos. Mas essa é uma idéia preconcebida e que deveria ser estudada e meditada com mais imparcialidade.
Os demais discípulos acreditaram na ressurreição de Jesus porque viram Jesus, porque Jesus se manifestou a eles, conversou com eles, comeu com eles e os fortaleceu com o Espírito Santo.
Se isso não tivesse acontecido, eles teriam acreditado se não tivessem visto e alguém lhes contasse que vira o Senhor?
Você acreditaria? Então, por que rotulam Tomé de incrédulo?  E os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35), passagem evangélica que será abordada no próximo domingo, não estavam descrentes durante a sua caminhada? Sobre o que eles conversavam na jornada? Não era sobre a desilusão, a descrença, a dúvida dos ensinamentos do Mestre? Ao serem-lhes perguntado por Jesus, o estranho, o porquê de tanto desânimo, tanta desilusão, o que responderam? “O que aconteceu a Jesus, Nazareno, que foi um profeta poderoso em ação e palavras diante de Deus e de todo o povo. Nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram. Nós esperávamos que fosse ele o libertador de Israel, mas, apesar de tudo isso, já faz três dias que tudo aconteceu. É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos deram um susto. Elas foram de madrugada ao túmulo, e não encontraram o corpo de Jesus. Então voltaram, dizendo que tinham visto anjos, e estes afirmaram que Jesus está vivo. Alguns dos nossos foram ao túmulo e encontraram tudo como as mulheres tinham dito. Mas ninguém viu Jesus. (grifo meu)” (Lc 24,19-24). Esses discípulos, que estavam a caminho de Emaús, acreditavam ou acreditariam que Jesus havia ressuscitado sem o terem visto? Não, claro que não. Só acreditaram depois de o terem visto: “Então Jesus entrou para ficar com eles. Sentou-se à mesa com os dois, tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles”. (Lc 24,29-31).
Repito: então, por que rotulam Tomé de incrédulo? Os outros também não estavam incrédulos e não continuariam incrédulos se não tivessem visto Jesus?  A primeira vez que o nome de Tomé aparece nas Sagradas Escrituras é nas listas dos apóstolos (Mt 10,2-4; Mc 3,16-19; Lc 6,12-16). Se formos bons observadores, veremos que o nome de Tomé está sempre relacionado com o de Mateus. Não sabemos o porque disso, mas os Evangelhos nos transmitem um Mateus ponderado e metódico. Talvez Tomé também fosse assim.
Em outra oportunidade, no Evangelho de João, 10,39-40, as autoridades religiosas judaicas estavam planejando prender Jesus, “mas Jesus escapou das mãos deles”, e se refugiou do outro lado do rio Jordão. Estando Jesus lá, recebeu a notícia da morte de seu amigo, Lázaro, e se propôs a voltar novamente para a zona de perigo e se expor ao alcance das mãos dos que queriam prendê-lo e matá-lo. Então Jesus disse: “Lázaro está morto. [...] Agora vamos para a casa dele.” (Jo 11,14).
A aldeia de Betânia, onde moravam os irmãos Marta, Maria e Lázaro, era proximidade de Jerusalém, apenas oito quilômetros de distância. Voltar para Jerusalém ou proximidades seria ir ao encontro da morte.
O terror apoderou-se dos apóstolos em contraste com a serenidade do Mestre, difícil de aceitar numa ocasião destas. No entanto, era impossível convencer Jesus de desistir do seu regresso à Judeia. Era uma hora difícil para os apóstolos. Voltar para Jerusalém seria ir ao encontro da morte.
Jesus estava voltando para o reduto de seus inimigos, para o covil das serpentes, a cova dos leões. E quem manifestou coragem nesse momento? Foi Tomé que se colocou à frente de todos os apóstolos e discípulos e disse destemidamente: “Vamos nós também para morrermos com ele.” (Jo 11,16).
Embora os demais apóstolos continuassem a expor a Jesus os perigos do seu regresso a Jerusalém, Tomé, homem de poucas palavras, observa e compreende. Sim, Jesus sabe melhor do que ninguém os perigos a que se vai expor, mas Tomé vê que Jesus é obrigado a ir, para cumprir a divina vontade do Pai. Só haviam duas soluções. Ou abandonar o Mestre, ou ir, com ele, ao encontro da morte.
O primeiro discípulo que se decidisse abandonar o Mestre talvez arrastasse consigo os outros indecisos. Se alguém abandonasse o Mestre, talvez outros lhe seguissem o exemplo. Então Tomé toma a decisão e arrasta todos os demais consigo: “vamos nós também, para morrermos com ele.” É nas ocasiões difíceis, que se manifestam os grandes amigos, os grandes homens e esse homem foi Tomé. Tomé sabe qual a grande responsabilidade dos que seguem a Jesus. Tomé sabe que é preciso ir com Jesus, se preciso, até à morte. Tomé foi o primeiro a decidir-se, plenamente consciente dos perigos da sua atitude. A sua coragem, fidelidade e amor para com o Mestre, levou-o a seguir Jesus nesse momento crucial, dando o exemplo aos outros apóstolos.
Em outro momento, quando Jesus estava reunido com os seus apóstolos para comemorar sua última páscoa, fez o discurso de despedida para orientá-los o que ia acontecer, como eles deveriam proceder, e para onde ele iria, e Pedro lhe pergunta: “Senhor, para onde vais?’ Jesus respondeu: ‘Para onde vou, você não pode me seguir’. (Jo 14,36). E Jesus continua o seu discurso: “E para onde eu vou, vocês já conhecem o caminho.” (Jo 14,4). Nenhum dos apóstolos havia entendido nada, mas nenhum tinha coragem de interromper o Mestre.
O Mestre vai partir. Como poderiam eles seguir a Jesus? Os apóstolos não compreenderam as palavras do Mestre e não ousavam interrogá-lo, manifestando assim a sua ignorância. E quem buscou para que o fato fosse esclarecido? Foi Tomé o primeiro que expôs a sua dúvida, que era também a dúvida de todos os apóstolos. Mas Tomé era um homem metódico e ponderado, e como ele gostava das coisas nos mínimos detalhes, interrompeu o Mestre e fez a pergunta que todos gostariam de ter feito e não fizeram: “Senhor, nós não sabemos para onde vais; como podemos conhecer o caminho?’ (Jo 14,5).
Tomé pelo contrário, supera o receio, a vergonha e a expectativa e expõe a sua ignorância e aguarda o esclarecimento de Jesus. Tomé queria seguir a Jesus, mas Jesus deveria dizer para onde ia. E Jesus diz para que veio e qual foi a finalidade de sua estadia entre os homens: ele não veio para mostrar o caminho, mas ele é o “Caminho”; ele não veio para transmitir a verdade, ele é a  “Verdade”; ele não veio para  ensinar com se vive a vida, ele é a “Vida”: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim. Se vocês me conhecem, conhecerão também o meu Pai. Desde agora vocês o conhecem e já o viram”. (Jo 14,6-7).
Chegamos, finalmente, na cena que chama a atenção na nossa liturgia de hoje. Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, que quer dizer “Gêmeo” quando da manifestação de Jesus para os apóstolos, não estava com eles. Disseram-lhe os outros discípulos: “Vimos o Senhor”. Tomé, que no seguimento a Jesus, havia vivido tantos contratempos e acontecimentos que não entendera, já não era o mesmo Tomé crente, mas um Tomé receoso, cuidadoso, atento a todos os pormenores com a sua crítica exigente que tinha direito a resposta razoavel para todas as afirmativas que colocassem em dúvida a sua credibilidade. Deixara de ser um homem pronto a crer e aceitar, e passou a se preocupar em não ser vítima da sua auto-ilusão, mas aquele que se recusava a crer até no que via. Tomé aceitara o convite de Jesus  para seguí-lo, e tinha se proposto até ir com ele para Betânia e, se fosse necessário, morrer com Jesus; Tomé queria saber para onde Jesus dizia que iria para ele pudesse ir junto, não importando para onde fosse. Mas tudo havia se tornado uma ilusão: o Mestre havia morrido, o sonho acabara. E agora vem os discípulos e lhe dizem: “Vimos o Senhor” exatamente no dia e hora em que Tomé estava ausente. Estariam os discípulos de Jesus querendo brincar com coisa tão importante e séria? Tomé já havia acreditado demais. Não queria sofrer uma nova desilusão.
Ao ouvir: “Vimos o Senhor”, Tomé responde prontamente e com convicção: “Se eu não vir o sinal dos cravos nas suas mãos, e não puser o dedo no lugar dos cravos, e não puser a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma acreditarei.” (Jo 20,25).
Como pode ser interpretada esta atitude de Tomé? Indiferença? Descrença? Honestamente, qual teria sido a sua atitude numa situação dessa? Você acreditaria prontamente no que diziam, ou deixaria transparecer a sua dúvida, a sua incredulidade, a sua indiferença, a sua descrença? Indiferença não. Talvez, o medo de se encontrar com Jesus depois de tudo que se passara.
Tomé, que havia se declarado pronto a morrer pelo Mestre, que havia encorajado os outros apóstolos a seguí-lo, afinal, também, como os demais, havia fugido na hora de perigo em que o Mestre fora preso, julgado, condenado e crucificado. Talvez o medo de sofrer uma nova desilusão.
A convivência com Jesus havia levado Tomé a um mundo que não era o seu, e nesse momento, afastado do seu Mestre, voltara à sua antiga natureza materialista. Assaltado pela tristeza, pela dúvida e pela desilusão, recusava-se a crer mesmo naquilo que visse, até que pudesse agarrar com as suas mãos e fazer como os cegos que por vezes se enganam menos que os que tem visão.
E acontece que, “oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa e Tomé estava com eles. Estando as portas fechadas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja com vocês’.” (Jo 20,26). E acontece que Tomé estava presente. A voz calma de Jesus soa no ambiente com toda a nitidez: “A paz esteja com vocês”. Era a mesma voz que Tomé tão bem conhecia e que durante três anos lhe falara da ressurreição que ele, agora, colocava obstáculo e se recusava em aceitar. O Mestre voltara com a sua saudação tão conhecida.“A paz esteja com vocês”.
Era o mesmo Mestre; era o Mestre mesmo... Era a mesma saudação de paz que Jesus dirigia nesse momento àqueles que dias antes o haviam abandonado e fugido, que haviam quebrado as suas promessas de morrer pela fé, que haviam voltado para os seus afazeres, os seus lares.
O Mestre não dirige a Tomé uma única palavra de censura, como também não faria a cada um de nós. Em vez disso, o Mestre voltara com a sua calma costumeira e serenidade para lhes dar a sua paz. Essa paz que excede todo o nosso entendimento. O Mestre está mais pronto a conceder o seu perdão do que nós a recebê-lo.
Jesus aproxima-se, olha para cada um dos apóstolos e fixa o seu olhar em Tomé. Desta vez Jesus viera propositadamente para Tomé. Era o Bom Pastor que vinha buscar a ovelha perdida, o Mestre que vinha em auxílio do seu discípulo querido. Jesus dirige-se para Tomé e coloca-se na sua frente, e lhe diz: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não seja incrédulo mas fiel.” (Jo 20,27). Numa crise de fé, Tomé tem de decidir e agir. Ele sente uma nova, verdadeira e poderosa fé nascer no seu coração. Aquele Mestre que ele tanto amara, aquele por quem estivera pronto a dar a sua vida, aquele em quem crera como homem, como Mestre, como amigo, aquele em quem crera sem esperança, estava na sua frente. Cristo voltara de além-túmulo para lhe dizer que era mais do que um Mestre, mais do que um amigo, mais do que um profeta. Cristo voltara para lhe lembrar as suas palavras: Não fique perturbado o coração de vocês; acreditem em Deus, acreditem também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu teria dito a vocês; vou prepara lugar para vocês. E, se eu for e preparar lugar para vocês, virei outra vez, e tomarei vocês para mim mesmo, para que onde eu estiver estejam vocês também. E para onde eu vou vocês conhecem o caminho.” (Jo 14,1-4). Tomé, movido pela poderosa fé que sentia no seu coração, disse o que até aí não tinha descoberto: “Meu Senhor e meu Deus”. (Jo 20,28).
Tomé tornou-se o primeiro dos apóstolos a se dirigir a Jesus nestes termos, chamando-o de “Meu Deus”. Ninguém até aquele momento, nem mesmo Pedro, nem mesmo João, haviam pronunciado a palavra “Deus” dirigindo-se a Jesus. Tomé não se limita a ter uma nova opinião sobre a ressurreição de Jesus. Ele toma uma decisão. “Meu Senhor”. Ele se arrepende e entrega-se incondicionalmente a Jesus aceitando-o como seu Salvador. “Meu Deus”. Já não era a mesma fé sem esperança, movida pela lealdade a um amigo. Daí em diante, Tomé punha Jesus Cristo em igualdade com Deus Pai, acredita em Jesus Cristo como o Filho único de Deus.
Por vezes uma fé forte cresce vagarosamente. Após três anos de estudos e experiências, alegrias e desilusões, Tomé atingira a verdadeira maturidade da fé em Jesus Cristo como Deus onipotente.
Tomé, o chamado de obstinado, descrente no testemunho até aí dado pelos apóstolos, passara a ser o mais convicto de todos, avançando logo do fato da ressurreição para o adorar como Senhor e como Deus. Quando da primeira vez Tomé se decidira a seguir a Cristo para morrer por ele, arrastara os outros apóstolos após si. Com esta nova experiência de Tomé e com a sua declaração de fé, a quantos crentes, através dos tempos, tem Tomé trazido aos caminhos do Senhor?
Podemos dizer que, Tomé duvidou para que nós pudéssemos crer.
Quantos de nós queremos ver para crer. E Jesus admoesta a Tomé e a cada um de nós: “Você acreditou porque me viu? Bem-aventurados os que acreditaram sem terem visto.” (Jo 20, 29).

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