I DOMINGO DA QUARESMA – ANO “C”
"ESTE É O MEU FILHO, O ESCOLHIDO. ESCUTAI O QUE ELE DIZ!" – (Lc
9,35).
Diácono Milton Restivo
A
transfiguração de Jesus é uma passagem que se encontra em todos os Evangelhos
sinóticos: Lucas 9,28-36, Mateus 17,1-9 e Marcos 9,2-10, mas cada um dos
evangelistas sinóticos trabalhou a seu modo a narrativa dentro dos objetivos
específicos que lhe era peculiar.
A transfiguração
de Jesus é o ponto culminante da sua vida pública, assim como o seu batismo é o
seu ponto de partida, e sua ascensão aos céus é o seu termo.
Pedro refere-se
a esse glorioso evento na sua segunda carta: “De fato, não tiramos de fábulas complicadas o que lhes ensinamos sobre
o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pelo contrário, falamos porque
somos testemunhas oculares da majestade dele. Pois ele recebeu de Deus Pai a
honra e a glória, quando uma voz vinda de sua Glória, lhe disse: ‘Este é o meu
Filho amado: nele encontro o meu agrado’.” (2Pd 1,16-18).
João, também,
no seu Evangelho, não deixa passar despercebida a contemplação da glória de
Jesus que foi testemunhada por ele, por Pedro e Tiago: “E nós contemplamos a sua glória; glória do Filho único do Pai, cheio
de amor e fidelidade.” (Jo 1,4b). Então, podemos dizer que duas das
testemunhas oculares privilegiadas fazem alusão à transfiguração de Jesus.
Quando falamos
de Transfiguração de Jesus logo a associamos ao monte Tabor, mas, por incrível
que possa parecer, nenhum dos evangelistas que narra esse episódio cita o fato
como acontecido nesse monte; os evangelistas são unânimes em afirmar que Jesus
subiu numa “alta montanha” (Mc 9,2;
Mt 17,1), ou apenas “à montanha” (Lc
9,28) sem citar o nome da montanha.
Pela narrativa
dos Evangelhos não sabemos que montanha foi essa. A tradição deu o nome a essa
montanha, como sendo o monte Tabor, a partir do século IV. Isso foi dito pela
primeira vez por Cirilo de Jerusalém e por Jerônimo em suas obras literárias.
O monte Tabor não é citado nenhuma vez no Novo
Testamento, mas são encontrados treze registros do monte Tabor no Antigo
Testamento, a saber: Josias 19,12; 19,17; 19,22; 19,34; Juízes 4,6; 4,12; 4,14; 8,18; 1 Samuel
10,3; 1 Crônicas 6,62; Salmo 89 (88),13; Jeremias 46,18 e Oséias 5,1.
Possivelmente,
depois de um dia cansativo de jornada e contato com o povo, Jesus sentiu
necessidade de um recolhimento para descansar, e pelo que vemos nas Sagradas
Escrituras, o seu melhor descanso era a oração, e quando Jesus se propunha a
rezar, subia numa montanha ou alto monte. Desta feita Jesus não vai sozinho.
Escolhe três dos quatro primeiros escolhidos dos seus discípulos: Pedro, Tiago
e João, e sobe a uma alta montanha.
Esta cena nos
reporta ao Êxodo 24,1-3, onde Moisés é convidado por Yahweh a subir à montanha
de Deus em companhia de Aarão, Nadab, Abiu, três auxiliares mais próximos de
Moisés e mais setenta anciãos. Somente Moisés se aproximou de Deus. Também não
foi por acaso que Jesus levou consigo três dos seus discípulos, porque, no
Antigo Testamento, para se provar a veracidade de um fato ou delito havia a
necessidade do depoimento de duas ou três testemunhas: “Uma testemunha não é suficiente contra alguém, seja qual for o caso do
crime ou pecado. Em todo pecado que alguém tiver cometido, o processo será
aberto pelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas”. (Dt 19,15).
Além desta
cena da transfiguração na montanha, em outras ocasiões de suma importância de
sua vida e sua mensagem, Jesus também leva consigo esses mesmos três discípulos,
como, por exemplo, na ressurreição da filha de Jairo em Marcos 5,35 e no
Getsêmani antes de sua prisão, em Marcos 14,33, Mateus 26,37 e Lucas 22, 40. Em
conversas particulares Jesus também procurava a companhia desses três
discípulos, como quando explicava sobre a destruição do Templo, só que, desta
feita, estava também André: “Jesus estava
sentado no Monte das Oliveiras, de frente ao Templo. Então Pedro, Tiago, João e
André lhe disseram em particular: ‘Dize-nos quando vai acontecer isso, e qual
será o sinal que de todas essas coisas estarão para acabar?”. (Mc 13,3-4).
Então, para provar a veracidade de seu relacionamento com o Pai, Jesus quer que
três dos seus discípulos sejam testemunhas oculares e auditivas. E Jesus, em
companhia desses três discípulos, sobe
a um monte alto.
No mundo do
Antigo Testamento, Yahweh revelava-se frequentemente sobre as montanhas: “Abraão, tome seu filho, o seu único filho
Isaac, a quem você ama, vá à terra de Moriá, e o ofereça aí em holocausto,
sobre uma montanha que eu vou lhe mostrar.” (Gn 22,1-14); “Moisés levou as ovelhas além do deserto e
chegou ao Horeb, a montanha de Deus. O anjo de Yahweh apareceu a Moisés numa chama de fogo, do meio
de uma sarça. Moisés prestou atenção: a
sarça ardia no fogo, mas não se consumia”. (Ex 3,1-6); “Yahweh disse a Moisés: ‘Suba até junto de mim na montanha, pois eu
estarei ai para lhe dar as tábuas de pedra com a lei e os mandamentos que
escrevi para os instruir’. Moisés se levantou com seu ajudante Josué. E subiram
à montanha de Deus”. (Ex 24,12-13); “Elias
se levantou, comeu e bebeu e sustentado pela comida, caminhou quarenta dias e
quarenta noites até o Horeb, a montanha de Deus. Elias entrou na gruta da
montanha, e ai passou a noite. Então Yahweh lhe dirigiu a palavra...” (1Rs
19,8-13).
Como vemos, Moisés
e Elias, que vão ser mencionados na passagem da transfiguração, receberam as
suas revelações num monte.
No Evangelho
de Lucas a narrativa da transfiguração de Jesus vem na sequência do diálogo de
Jesus com Pedro e com os discípulos sobre, para a multidão e para eles, quem
era Jesus: “Quem dizem as multidões que
eu sou? [...] ‘E vocês, quem dizem
que eu sou?”. (Lc 9,18.20), e como
deveria ser o seu seguimento: “Se alguém
quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome cada dia a sua cruz, e me siga”. (Lc
9,23).
Lucas começa a
passagem da transfiguração com as palavras: “Mais ou menos oito dias depois dessas
palavras, tomando consigo a Pedro, João e Tiago, ele subiu à montanha para
orar. Enquanto orava, o aspecto de seu rosto se alterou, suas vestes
tornaram-se de fulgurante brancura.” (Lc 9,28-29).”
Lucas quer
ligar estreitamente este texto com a mensagem anterior que vislumbra, à
distância, a silhueta da cruz. O texto destaca um aspecto de Jesus que é muito
caro a Lucas: o fato de que Jesus era um homem de oração. Neste momento ele “subiu à montanha para rezar”. (Lc 9,28).
Jesus retirava-se com frequência a sós
e passava horas em oração; por vezes, noites inteiras em oração.
Nos momentos
mais significativos da sua vida, Jesus orava. No evangelho de Lucas, Jesus é,
sobretudo, o grande mestre de oração e da exultação no Espírito Santo. Lucas
diz no seu Evangelho que, após o seu batismo, Jesus entrou em oração. Como resposta
à sua oração, os céus abriram-se e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma
de pomba. No mesmo instante ouviu-se a voz de Deus Pai vinda do céu dizendo: “Tu és o meu Filho muito amado no qual ponho
o meu enlevo” (Lc 3,21-22). Nos
Evangelhos encontramos Jesus como um homem assíduo na oração e com muita
frequência, isso acontecia sobre uma montanha ou no deserto: "De madrugada, estando ainda escuro,
ele se levantou e retirou-se para um lugar deserto e ali orava" (Mc
1,35).
Jesus é-nos
apresentado pelos evangelhos como um homem que orava nos momentos críticos. Os grandes acontecimentos da vida de
Jesus também aconteceram num monte ou montanha; as bem-aventuranças e o sermão
da montanha nos capítulos de 5 a
7 de Mateus e os recolhimentos de Jesus em montes e montanhas para rezar ou
para tomar decisões importantes e radicais para o seu ensinamento.
No momento de
escolher os doze Apóstolos, Jesus retirou-se para uma montanha e passou a noite
em oração: “Jesus
subiu ao monte e chamou os que desejava escolher. E foram até ele. Então Jesus
constituiu o grupo dos Doze, para que ficassem com ele e para enviá-los a
pregar, com autoridade para expulsar os demônios.” (Mc 3,13-15; Lc 6,12-13); “Ao raiar do dia, saiu e foi para um lugar deserto" (Lc 4,42a);
"Ele, porém, permanecia retirado em
lugares desertos e orava". (Lc 5,16); "Estando num certo lugar, orando, ao terminar, um de seus
discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a orar..." (Lc 11,1); "Tendo-as
despedido, subiu ao monte, a fim de orar a sós. Ao chegar a tarde, estava ali,
sozinho" (Mt 14, 23).
No Jardim das
Oliveiras, passou o tempo em oração e pediu aos discípulos para orarem, a fim de
não entrarem em tentação (Lc 22, 39-42). Na cruz, orou pelos seus inimigos (Lc
23,34).
E, na
montanha, em companhia de Pedro, Tiago e João, o rosto e as vestes de Jesus
tornam-se fulgurantes de luz. Moisés e Elias aparecem, e é importante notar que
o evangelista destaca sobre o que eles falavam: “de sua partida que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9,31). Uma
nuvem os cobre e uma voz do céu diz: “Este
é o meu Filho, o Eleito; ouvi-o” (Lc 9,35).
A nuvem e a
luz são dois símbolos inseparáveis nas manifestações do Espírito Santo. Desde
as manifestações de Deus (teofanias) do Antigo Testamento, a nuvem, ora escura,
ora luminosa, revela o Deus vivo e salvador, escondendo a transcendência de sua
Glória: durante a caminhada no deserto (Ex 14,19-20); com Moisés sobre a
montanha do Sinai (Ex 19,16; 24,16-17), na Tenda de Reunião (Ex 40,34-35); e
com Salomão por ocasião da dedicação do Templo (1Rs 6,13). Na Transfiguração a
Trindade inteira se manifesta: o Pai, na voz; o Filho, no homem; o Espírito
Santo, na nuvem clara.
E Jesus mostra
sua glória divina, confirmando, assim, a confissão de Pedro. Mostra também que,
para “entrar em sua glória” (Lc
24,26), deve passar pela cruz em Jerusalém.
Durante a oração
aparecem Moisés e Elias, símbolos da Lei e dos Profetas. Assim Lucas mostra que
Jesus está em continuidade com as Escrituras, isso é, o caminho que Jesus segue
está de acordo com a vontade de Deus. Os dois personagens, tanto Moisés como
Elias, foram profetas rejeitados e perseguidos no seu tempo. Jesus não foi
diferente deles, mas o Pai permanece com ele: “Este é o meu Filho, o Eleito; ouvi-o” (Lc 9,35).
Moisés e Elias
haviam visto a glória de Deus sobre a montanha; a Lei e os profetas tinham
anunciado os sofrimentos do Messias. Fica claro que a Paixão de Jesus é sem
dúvida a vontade do Pai: o Filho age como servo de Deus. Moisés foi o
legislador do povo israelita e Elias o príncipe dos profetas, e ali, na
montanha, eles representavam a Lei e os Profetas.
No seu
Evangelho Marcos afirma que “as roupas de
Jesus ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra
poderia alvejar”. (Mc 9,3).
Essa
transformação aponta para a realidade da ressurreição de Jesus. Ninguém, nem
mesmo a morte, poderá deter o projeto do Reino, pois o Mestre vai ressuscitar
depois de três dias.
Moisés e Elias
presentes e conversando com Jesus, estão representando, respectivamente, a Lei
e os Profetas, confirmando, assim, a realização de tudo o que fora profetizado
sobre o Messias em todo o Antigo Testamento. Moisés é o líder da libertação do
Egito.
O
comparecimento deles vem dar testemunho de Jesus. Jesus é o libertador
definitivo, prometido e prefigurado nos líderes do passado. Elias é o
restaurador da mensagem de Yahweh no Reino do Norte no tempo do rei Acab, o
profeta que libertou o povo da idolatria que gera opressão. O Antigo Testamento
testemunha que Jesus veio para libertar mediante a entrega total de sua vida.
Nuvem,
esplendor, personagens e, sobretudo, a voz que sai da nuvem são modos de
indicar a presença de Deus no acontecimento. O próprio Pai garante que Jesus é
seu Filho amado, ao qual é preciso dar adesão. Nesse versículo temos um dos
pontos altos do Evangelho de Marcos. Desde o início do seu Evangelho, Marcos
afirma que Jesus é Filho de Deus: “Começo
da Boa Notícia de Jesus, o Messias, o Filho de Deus”. (Mc 1,1) e, ao ser
batizado, o Pai diz: “Tu és o meu Filho
amado; em ti encontro o meu agrado” (Mc 1,11).
O termo
“filho” recorda o Salmo 2,7, onde um rei é declarado filho de Deus. Jesus é
esse Rei, mas seu messianismo passa pela entrega da vida.
Pedro, ao
despertar do sono, faz uma sugestão descabida: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, uma
para Moisés e outra para Elias”. (Lc 9,33). Claro, era bom ficar ali, num
momento místico, longe do dia-a-dia, da caminhada, das dúvidas, dos
desentendimentos, da luta. Quem não iria querer? Mas não era uma sugestão que
Jesus pudesse aceitar. Terminado o momento de revelação, “Jesus estava sozinho”, e, ao amanhecer o dia, “desceram da montanha” (Lc 9,37). Por tão gostoso que seja ficar no
alto da montanha, é preciso descer para enfrentar o caminho até o Monte
Calvário.
A experiência
da transfiguração está intimamente ligada com a experiência da cruz. Quem sabe,
talvez a experiência da transfiguração na montanha desse a Jesus a coragem
necessária para aguentar a experiência bem dolorida do Calvário.
A subida à montanha com Jesus é uma caminhada que
todos devemos e temos que fazer, para orar, para refletir, para ouvir, para
escutar. Este escutar com o sentido de obedecer é um compromisso de seguir
Jesus em todas as circunstâncias. Por isso não podemos querer, como os
discípulos, ficar e fazer tendas no cimo do monte. Fazer tendas é sinal da
acomodação, que se apodera de nós facilmente, é o ficar ali, é o ficar longe
dos acontecimentos, é o ficar longe das dificuldades da vida, é o ficar a ver à
distância, longe dos irmãos e da comunidade.
Mas a mensagem de Jesus é clara: depois da oração,
depois de ouvida a mensagem, é preciso descer da montanha, descer à terra,
entrar no mundo real passar à ação e pormo-nos à caminho. É preciso que,
com Marcos, confessemos que Jesus é o Filho de Deus e o sigamos. E assim como
os discípulos viram Moisés e Elias falando com Jesus também nós veremos Jesus
cheio de esplendor e glória. Ele é a única autoridade credenciada pelo Pai. Ele
está conosco para sempre.
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