XIX DOMINGO COMUM
“A QUEM MUITO FOI DADO, MUITO SERÁ PEDIDO.” (Lc 12,48b).
Diácono
Milton Restivo
“Feliz o povo cujo Deus é o Senhor e a nação que escolheu por sua herança!” (Sl 33 (32),12). O
Salmo responsorial da liturgia de hoje é um hino de louvor a Yahweh que cria o
universo e intervém na história, conduzindo o seu povo para a vida.
A carta aos
Hebreus, contida na segunda leitura, aborda o tema “fé”.
O escritor adota
como parâmetro de fé as atitudes dos patriarcas do povo israelita que aderiram
ao chamamento de Yahweh sem questionamento. Sara, esposa do patriarca Abraão,
também é citada como exemplo e fé que “...
embora estéril e já de idade avançada, se tornou capaz de ter filhos, porque
considerou fidedigno o autor da promessa” (Hb 11,11).
Fé é a firme convicção de que algo seja verdade sem
nenhuma prova concreta de que este algo seja realmente verdade, pela absoluta confiança
que depositamos neste algo ou na pessoa que tenha nos prometido aquilo a que
passamos a crer.
A fé cristã é
uma completa confiança em
Jesus Cristo pela qual se realiza a união com o seu Espírito,
havendo a vontade de viver a vida que ele aprovaria.
Paulo deu uma
prova de maturidade nessa fé quando declarou: “Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim” (Gl
2,20).
Fé não é uma
aceitação cega e fanática, mas um sentimento baseado nos fatos da vida de Jesus,
da obra de Jesus, do poder de Jesus e da Palavra de Jesus. A revelação é
necessariamente uma antecipação da fé, conforme escreve Paulo aos romanos: “De fato, no Evangelho a justiça se revela
única e exclusivamente através da fé, conforme diz a Escritura: ‘o justo vive
pela fé’.” (Rm 1,17). Nesta mesma carta Paulo ratifica isso e destaca que a
fé pressupõe dois elementos prévios e básicos: a revelação que vem de Deus e o
anúncio do evangelho: “A fé depende,
portanto, da pregação, e a pregação é o anúncio da palavra de Cristo”. (Rm
10,17).
A fé é descrita
como “uma simples, mas profunda confiança
naquele que de tal modo falou e viveu na luz, que instintivamente os seus
verdadeiros adoradores obedecem à sua vontade, estando mesmo às escuras”.
A mais simples
definição de fé é uma confiança que nasce do coração. Não creio que possa haver
melhor definição para a fé do que as que as próprias Escrituras nos fornecem na
carta aos Hebreus: "A fé é um modo
de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se
vêem" (Hb 11,1).
Os termos “fé e crer” das cartas paulinas indicam
a relação interpessoal do cristão com Deus – rocha inabalável, pedra angular,
firmeza inquebrantável, abrigo seguro, ânimo, alegria.
A fé torna-se
para o cristão abandono à ação de Deus, experiência de segurança e de firmeza
inabalável, baseados no evento Jesus Cristo morto e ressuscitado.
Fé é adesão
humana à ação divina.
A fé é o ato
com o qual o ser humano, respondendo à graça divina que o interpela, abre a
janela e deixa a luz entrar.
A luz entra, o
ilumina e transforma sua situação: “Pois
se você confessa com a sua boca que Jesus é o Senhor, e acredita com seu
coração que Deus o ressuscitou dos mortos, você será salvo. É acreditando de
coração que se obtém a justiça, e é confessando com a boca que se chega à
salvação” (Rm 10,9-10), e isso faz referência ao livro do Deuteronômio: “Este mandamento que hoje lhe ordeno não é
muito difícil, nem está fora de seu alcance. Ele não está no céu, para que você
fique perguntado: ‘Quem subirá por nós até o céu para trazê-lo a nós, a fim de
que possamos ouvi-lo e colocá-lo em prática? ’ Também não está no além-mar,
para que você fique perguntando: ‘Quem atravessará para nós o mar, para trazer
esse mandamento a nós, a fim de que possamos ouvi-lo e colocá-lo em prática? ’
Sim, essa palavra está ao seu alcance: está na sua boca e no seu coração, para
que você a coloque em prática” (Dt 30,11-14). À adesão interior deve
corresponder a manifestação externa de fé envolvendo o ser humano em todas as
suas dimensões.
Fé é confiar em
Deus em tudo e para tudo. O escritor da carta aos Hebreus afirma: “O meu justo vive pela fé; mas se ele volta
atrás, nele eu não encontro mais nenhuma satisfação. Nós, porém, não somos como
aqueles que voltam atrás para se perder, mas somos homens de fé, para salvar a
nossa vida.” (Hb 10,38-39). “A fé é
um conhecimento para o qual é preciso despertar; é Deus conhecendo-se a si
mesmo em nós” (Jean-Yves Leloup).
Jesus é a
origem da fé.
A verdadeira fé
é adesão total à vida, aos ensinamentos, à obra, ao poder e à Palavra de Jesus.
Consciente disso, Paulo escreve: “Assim,
justificados pela fé, estamos em paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus
Cristo. Por meio dele e através da fé, nós temos acesso à graça, na qual nos
mantemos e nos gloriamos, na esperança da glória de Deus.” (Rm 5,1-2).
O viver pela fé
é uma realidade tão necessária quanto alimentar-se; não é privilégio de alguns,
é dever de todos: “Ora, Cristo
morreu por todos, e assim, aqueles que vivem, já não vivem para si, mas para
aquele que por eles morreu e ressuscitou. [...] Se alguém está em Cristo, é nova
criatura” (2Cor 5,15.17).
A fé da Igreja
está centrada na pessoa de Jesus Cristo; tudo o que pedirmos ao Pai deve ser
por meio dele, em nome de Jesus: “Eu
garanto a vocês: se vocês pedirem alguma coisa a meu Pai em meu nome, ele a
concederá. Até agora vocês não pediram nada em meu nome: peçam e receberão,
para que a alegria de vocês seja completa” (Jo 16,23-24); “O que vocês pedirem em meu nome eu o farei,
para que o Pai seja glorificado no Filho. Se vocês pedirem qualquer coisa em
meu nome, eu o farei” (Jo 14,13-14).
Com frequência
Jesus incentivava os seus discípulos a terem fé, dando exemplos até irrisórios
como se estivesse dando ensinamentos a um jardim da infância, o que não é de
todo errado, porque nós mesmos, cristãos do Século XXI e do Terceiro Milênio,
ainda estamos no jardim da infância da fé; Jesus fazia isso para que todos
pudessem entender e não tivessem dúvidas sobre o que ele queria dizer: “Tenham fé em Deus! Porque eu garanto a
vocês: se alguém disser a esta montanha: ‘levante-se e jogue-se no mar’ e não
duvidar no seu coração, mas acreditar que isso vai acontecer, assim acontecerá”
(Mc 11,22-23).
Jesus ensina
que a oração sem fé não alcança o seu objetivo: “É por isso que eu digo a vocês: tudo o que vocês pedirem na oração,
acreditem que já o receberam, e assim será” (Mc 11,24).
Jesus ensina-nos
que a fé também se revela na oração em comunidade, quando, todos juntos, têm o
mesmo objetivo: “e lhes digo ainda mais:
se dois de vocês na terra estiverem de acordo sobre qualquer coisa que queiram
pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está no céu. Pois onde dois ou
três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ai no meio deles” (Mt
18,19-20).
Jesus deixa
claro que não existe fé sem perdão, e ninguém pode manifestar a sua fé através
da oração se não souber perdoar, e quem perdoa manifesta a sua fé: “Quando vocês estiverem rezando, perdoem
tudo o que tiverem contra alguém, para que o Pai de vocês que está no céu
também perdoe os pecados de vocês” (Mc 11,25), e afirma que o Pai só nos
perdoa se perdoarmos o irmão: “De fato,
se vocês perdoarem aos homens os males que eles fizeram, o Pai de vocês que
está no céu também perdoará a vocês. Mas se vocês não perdoarem aos homens, o Pai de vocês também não
perdoará os males que vocês tiverem feito.” (Mt 6,14-15; Mc 11,26).
O Catecismo da Igreja Católica nos ensina que
“na fé, a inteligência e a vontade
humanas cooperam com a graça divina: Crer é um ato da inteligência que assente
à verdade divina a mando da vontade movida por Deus através da graça”. A fé é
uma adesão pessoal do homem inteiro a Deus que se revela. Ela inclui uma adesão
da inteligência e da vontade à Revelação que Deus fez de si mesmo por suas
ações e palavras. É necessário, para obter esta salvação, crer em Jesus Cristo e
naquele que o enviou para nossa salvação “Como, porém, ‘sem fé é impossível
agradar a Deus' (Hb 11,6) e chegar ao consórcio dos seus filhos, ninguém jamais
pode ser justificado sem ela, nem conseguir a vida eterna, se nela não
permanecer até o fim” (Mt 10,22; 24,13)”. A fé é necessária à salvação. O
próprio Senhor afirma: “Aquele que crer e for batizado será salvo; aquele que
não crer será condenado” (Mc 16,16). (CIC 155; 176; 161; 183).
Era grande a multidão que acompanhava
Jesus por onde quer que ele fosse, uns sedentos da palavra, outros curiosos
para ver as maravilhas operadas por Jesus, outros para serem curados de suas
enfermidades e outros, ainda, para se aproveitarem da situação na expectativa
de que Jesus fosse multiplicar mais pães e peixes para saciar a sua fome sem
terem que trabalhar. Muitas vezes Jesus teve que ludibriar a multidão para ter
momentos de repouso, refugiando-se, ora na montanha, ora no deserto, e sempre
para rezar. Prova desse assédio constante é narrado por Lucas: “Enquanto isso, milhares de pessoas se
reuniram, de modo que uns pisavam nos outros” (Lc 12,1).
O evangelho da
semana passada terminou alertando contra o perigo que corre quem ajunta
tesouros para si mesmo na terra, mas não é rico diante de Deus: “Louco! Nesta mesma noite você vai ter que
devolver a sua vida. E as coisas que você preparou, para quem vão ficar? Assim
acontece com que ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico para Deus” (Lc
12,21).
A liturgia de
hoje nos ensina como ser rico diante de Deus, exercitando a nossa fé, o que se
torna ainda mais urgente quando consideramos que teremos de prestar contas de
nossa vida, sem saber quando isso ocorrerá: “Vocês também estejam preparados! Porque o Filho do Homem vai chegar na
hora em que vocês menos esperarem.” (Lc 12,40).
O Evangelho da
liturgia de hoje nos faz uma advertência geral: o desapego das coisas materiais
e a sua partilha. Jesus incentiva o abandono nas mãos do Pai e a busca
fundamental do Reino de Deus. Carinhosamente Jesus chama seus discípulos de “pequenino rebanho” e os tranquiliza “não tenhais medo” (Lc 12,32).
O
pequeno rebanho não deve se intimidar diante dos conflitos e perseguições dessa
sociedade gananciosa interesseira e egoísta. Afinal, o Reino é um dom gratuito
do Pai e ele no-lo dá com prazer e alegria. Entesoura para o céu quem se
esvazia aqui na terra. As coisas da terra se corrompem e podem ser roubadas: “Não ajuntem riquezas aqui na terra, onde a
traça e a ferrugem corroem, e onde os ladrões assaltam e roubam” (Mt 6,19).
As coisas do céu são incorruptíveis: “Ajuntem
riquezas no céu, onde nem a traça nem a ferrugem corroem, e onde os ladrões não
assaltam e nem roubam” (Mt 16,20). Quem coloca seu tesouro no céu, coloca
lá também seu coração, “porque onde está o teu tesouro, lá também está teu
coração.” (Lc 12,34; Mt 6,21).
O
importante é libertar-se do espírito de posse e abrir o coração para a
partilha. Diante da instabilidade dos bens e dos valores deste
mundo, Jesus nos exorta a buscar os valores definitivos: “Façam bolsas que não envelhecem, um tesouro que não perde o seu valor
no céu: lá o ladrão não chega, nem a traça rói” (Lc 12,33). Mas o meio que ele
ensina para conseguir esse tesouro aparece como o mais estranho: “vendam seus bens e dêem o dinheiro em
esmola” (Lc 12,33).
Jesus recomenda cingir os rins,
isto é, colocar-se à vontade para uma longa caminhada: “Estejam com os rins cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12,35). Rins
cingidos significam, também, uma atitude de alerta e prontidão para o trabalho.
Para
o povo da época de Jesus a túnica longa atrapalhava os movimentos e os passos,
então era necessário levantá-la e amarrá-la na cintura, na altura dos rins. “Lâmpadas acesas” é uma expressão de
igual significado, pois, na emergência, não há tempo para correr e providenciar
pavio, óleo, acender a lâmpada.
A
seguir Jesus discorre sobre a vigilância, sobre a atitude de cautela para não
ser surpreendido em atitude de ociosidade pelo patrão que retorna da viagem ou
pelo fim dos tempos, a chegada do Filho do Homem que pode chegar a qualquer
momento sem aviso prévio: “Vocês também
estejam preparados! Porque o Filho do Homem vai chegar na hora em que vocês
menos esperarem” (Lc 12,40). Para ilustrar tudo isso que falava da
vigilância, Jesus narra três pequenas parábolas: a volta do patrão (Lc 12,36-38);
a do ladrão imprevisto (Lc 12,39-41) e a do servo fiel e prudente (Lc
12,42-44).
A
primeira parábola fala do patrão que pode chegar a qualquer momento, devendo o
empregado estar atento e preparado. Interessante é Jesus dizer que o patrão vai
colocar avental (se cingirá),
colocará os empregados à mesa e os servirá. Quem seria esse patrão, senão o
próprio Jesus? Não foi isso que Jesus demonstrou na última ceia, conforme narra
João no seu Evangelho, 13,4-17?
Na
segunda parábola, a do ladrão imprevisto, Jesus alerta que o fim dos tempos
chegará como o ladrão que o dono da casa não sabe a que horas ele chegará; por
isso e para isso o cristão deve estar sempre preparado e vigilante para não ser
pego desprevenido.
Na
terceira pequena parábola Jesus se refere ao servo fiel e prudente, aquele que
está sempre atento e que não importa a hora em que o patrão chegar ou que seja
surpreendido pelo ladrão; ele está sempre trabalhando e de sentinela para não
ser pego desavisado. O patrão é um só e cada um de nós recebe um dever de
servir e não direitos e poderes. Deus vai exigir mais de quem tem mais
consciência de seu serviço, porque “a
quem muito foi dado, muito será pedido; a quem muito foi confiado, muito será
exigido” (Lc 12,48).
Esta última afirmação é claramente dirigida
aos responsáveis da comunidade; mas pode aplicar-se a todos os que receberam
dons materiais ou espirituais porque, o que se recebeu de graça, de graça deve
ser transmitido: “Vocês receberam de
graça, dêem também de graça!” (Mt 10,8). Olhando Jesus, percebemos o
quanto lhe somos devedores, e com nossa generosidade expressamos a ele nossa
gratidão. E ele não se deixa vencer em generosidade, “ama quem dá com alegria”:
“Saibam de uma coisa: quem semeia com mesquinhez,
com mesquinhez há de colher; quem semeia com generosidade, com generosidade há
de colher. Cada um dê conforme decidir
em seu coração, sem pena ou constrangimento, porque Deus ama quem dá com
alegria. Deus pode enriquecer vocês com toda espécie de graças, para que tenham
sempre o necessário em tudo e ainda fique sobrando alguma coisa para poderem
colaborar em qualquer boa obra, conforme diz a Escritura: ‘Ele distribuiu e deu
aos pobres; e sua justiça permanece para sempre.” (2Cor 9,6-8).
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