XX DOMINGO DO TEMPO COMUM
“EU VIM PARA COLOCAR FOGO SOBRE A TERRA...” (Lc 12,49).
“A Palavra de Deus que hoje nos é servida
convida-nos a tomar consciência da radicalidade e da exigência da missão que
Deus nos confia. Não há meios-termos: Deus convida-nos a um compromisso,
corajoso e coerente, com a construção do “novo céu” e da “nova terra”. É essa a
nossa missão profética”.
A
primeira leitura apresenta-nos a
figura do profeta Jeremias.
O profeta recebe
de Deus uma missão que lhe vai trazer o ódio dos chefes e a desconfiança do
Povo de Jerusalém: anunciar o fim do reino de Judá. Jeremias vai cumprir a
missão que Deus lhe confiou, doa a quem doer. Jeremias sabe que a missão
profética não é um concurso de popularidade, mas um testemunhar, com verdade e
coerência, os projetos de Deus.
Os chefes do
partido da resistência (quatro dos nomes desses chefes são referenciados no
próprio livro de Jeremias 38,1) mobilizam-se para se opor ao discurso
derrotista do profeta e propõem a sua eliminação.
Sedecias, o rei,
parece hesitante; mas, prisioneiro do poder dos seus generais, consente que o
profeta seja silenciado. Colocado numa cisterna cheia de lodo e sem nada para
comer, Jeremias chega a correr risco de vida. É um escravo núbio – Ebed-Melec –
que morava no palácio real, que intercede por Jeremias ao rei e o salva.
Toda a vida de
Jeremias é um arriscar a vida por causa da Palavra de Deus e da missão
profética. De natureza cordial e sensível, Jeremias não foi feito para o
confronto, para a agressão, para a violência das palavras ou dos gestos…
Mas Yahweh
chama-o nessa fase dramática da história de Judá e confia-lhe a missão de
“arrancar e destruir, arruinar e demolir” (Jr 1,10), predizer desgraças e
anunciar violência e morte; e o profeta, assaltado pela força de Deus, procura
concretizar a sua missão com uma força e uma convicção que nos impressionam.
Deus seduziu
Jeremias e o profeta pôs-se, incondicionalmente, ao serviço da Palavra, mesmo
que isso tenha significado violentar a sua própria maneira de ser, viver à
margem, afastar-se dos familiares, dos amigos, dos conhecidos, afrontar o ódio
dos poderosos.
Jeremias é o
protótipo do profeta que dá a sua vida para que a Palavra de Deus ecoe no mundo
e na vida dos homens. Jeremias não pensa em si mesmo, no seu comodismo, no seu
bem-estar, no seu êxito social ou profissional, no seu triunfo diante da
opinião pública. Jeremias pensa, apenas, em anunciar com fidelidade os projetos
de Deus aos homens, a fim de que os homens possam construir a história na
perspectiva de Deus.
Na parte final
deste texto, cumpre-se a promessa de Deus, expressa no relato da vocação de
Jeremias: “não tenhas medo, Eu estarei
contigo para te libertar” (Jr 1,8).
Através do
sentido de justiça e da coragem de um escravo estrangeiro, Deus intervém e
salva Jeremias. Desta forma, mostra-se como Deus está sempre ao lado daqueles
que anunciam fielmente a sua Palavra e como não abandona os profetas
perseguidos e marginalizados pelo mundo e pelos poderosos.
A
segunda leitura convida o
cristão a correr de forma decidida ao encontro da vida plena – como os atletas
que não olham a esforços para chegar à meta e alcançar a vitória.
Cristo – que
nunca cedeu ao mais fácil ou ao mais agradável, mas enfrentou a morte para
realizar o projeto do Pai – deve ser o modelo que o cristão tem à frente e que
orienta a sua vida.
Nos versículos
anteriores (Hb 11,1-40), que foram lidos na segunda leitura do domingo passado,
o autor apresentou uma galeria de figuras – desde Abraão a Moisés – que, pela
firmeza e fortaleza da sua fé, tiveram êxito e deixaram uma memória imorredoura,
apesar das dificuldades que tiveram de vencer. Agora, o autor desta carta aos
Hebreus convida os cristãos a imitar tais exemplos e a perseverar na fé.
Em concreto, os
quatro versículos que a leitura nos apresenta contêm uma exortação à constância
ou perseverança. A exortação começa com a imagem (clássica, na catequese cristã
dos primeiros tempos – (veja o que Paulo escreveu na primeira carta aos
Corintos 9,24-27; aos Gálatas 2,2; aos Filipenses 2,16; 3,1314 e na segunda
carta a Timóteo 2,5) sobre a corrida e o combate: os cristãos devem ser como
atletas que correm e combatem de forma decidida e empenhada e que dão provas de
coragem, de força, de vontade de vencer; as figuras antes nomeadas como modelos
de fé são os espectadores que, nas bancadas do estádio, observam e animam o
esforço e a perseverança dos crentes… Para que nada atrapalhe essa “corrida” e
esse “combate” para a vitória, os cristãos devem despojar-se do fardo do pecado
(o egoísmo, o comodismo, a autossuficiência), pois esse peso acrescido será um
obstáculo que impedirá o atleta de chegar vitorioso à meta.
Nessa “corrida”
e nesse “combate” o modelo fundamental do crente é Cristo. Ele, renunciando a
um caminho de facilidade e de triunfo humano, enfrentou a cruz e venceu a
morte; como resultado, foi exaltado e “sentou-Se
à direita do trono de Deus”. Dessa forma, Jesus abriu para os crentes o
caminho e mostrou-lhes como proceder. O seu exemplo deve estimular
continuamente os cristãos na sua caminhada em direção à vitória da caminhada.
O
Evangelho reflete sobre a
missão de Jesus e as suas implicações.
Define a missão
de Jesus como um “lançar fogo à terra”, a fim de que desapareçam o egoísmo, a
escravidão, o pecado e nasça o mundo novo – o “Reino”.
A proposta de
Jesus trará, no entanto, divisão, pois é uma proposta exigente e radical, que
provocará a oposição de muitos; mas Jesus aceita mesmo enfrentar a morte, para
que se realize o plano do Pai e o mundo novo se torne uma realidade palpável.
A caminho de
Jerusalém e da cruz, Jesus dá aos discípulos algumas indicações para entender a
missão que o Pai Lhe confiou (missão que os discípulos devem, aliás, continuar
nos mesmos moldes). O texto divide-se em duas partes.
Na primeira
parte (vers. 49-50), entrelaçam-se os temas do fogo e do batismo. Jesus começa
por dizer que veio trazer o fogo à terra. Que quer isto dizer?
O “fogo” possui
um significado simbólico complexo…
No Antigo
Testamento começa por ser um elemento teofânico (cf. Ex 3,2; 19,18; Dt 4,12;
5,4.22.23; 2 Re 2,11), usado para representar a santidade divina.
A manifestação
do divino provoca no homem, simultaneamente, atração e temor; ora, explorando a
relação entre o fogo e o temor que Deus inspira, a catequese de Israel vai
fazer do fogo um símbolo da intransigência de Deus em relação ao pecado… Por
isso, os profetas usam a imagem do fogo para anunciar e descrever a ira de Deus
(cf. Am 1,4; 2,5).
O fogo aparece,
assim, como imagem privilegiada para pintar o quadro do castigo das nações
pecadoras (cf. Is 30,27.30.33) e do próprio Israel.
No entanto, ao
mesmo tempo que castiga, o fogo também faz desaparecer o pecado (cf. Is
9,17-18; Jr 15,14; 17,4.27). O fogo aparece, assim, como elemento de
purificação e transformação (cf. Is 6,6; Eclo 2,5; Dn 3).
Na literatura
apocalíptica, o fogo é a imagem do juízo escatológico (Is 66,15-16): o “dia de Yahweh”
é como o fogo do fundidor (cf. Ml 3,2); será um dia, ardente como uma fornalha,
em que os arrogantes e os maus arderão como palha (cf. Mal 3,19) e em que a
terra inteira será devorada pelo fogo do zelo de Deus (cf. Sf 1,18; 3,8). Desse
fogo devorador do pecado, purificador e transformador, nascerá o mundo novo,
sem pecado, de justiça e de paz sem fim.
O símbolo do
fogo, posto na boca de Jesus, deve ser entendido neste enquadramento.
Jesus veio
revelar aos homens a santidade de Deus; a sua proposta destina-se a destruir o
egoísmo, a injustiça, a opressão que tornam feio o mundo, a fim de que surja,
das cinzas desse mundo velho, o mundo novo de amor, de partilha, de
fraternidade, de justiça.
Como é que isso
vai acontecer? Através da Palavra e da ação de Jesus, certamente; mas Lucas
estará, especialmente a pensar no Espírito enviado por Jesus aos discípulos – e
que Lucas vai, aliás, representar através da imagem das línguas de fogo.
Quanto à imagem
do batismo: ela refere-se, certamente, à morte de Jesus (cf. Mc 10,38, onde
Jesus pergunta a João e Tiago se estão dispostos a beber do cálice que Ele vai
beber e a receber o batismo que Ele vai receber).
Para que o
“fogo” transformador e purificador se manifeste, é necessário que Jesus faça da
sua vida um dom de amor, até à cruz. Só então nascerá o mundo novo.
Na segunda parte
(vers. 51-53), Jesus confessa que não veio trazer a paz, mas a divisão.
Lucas deixou
expresso, frequentemente, que “a paz” é um dom messiânico (cf. Lc 2,14.29;
7,50; 8,48; 10,5-6; 11,21; 19,38.42; 24,36) e que a função do Messias será
guiar os passos dos homens “no caminho da paz” (Lc 1,79).
Que sentido
fará, agora, dizer que Jesus não veio trazer a paz, mas a divisão?
O “dito” faz,
certamente, referência às reações à pessoa de Jesus e à proposta que Ele
oferece.
A proposta de
Jesus é questionante, interpeladora, e não deixa os homens indiferentes.
Alguns
acolhem-na positivamente; outros rejeitam-na. Alguns veem nela uma proposta de
libertação; outros não estão interessados nem em Jesus nem nos valores que Ele
propõe…
Como
consequência, haverá divisão e desavença, às vezes mesmo dentro da própria
família, a propósito das opções que cada um faz face a Jesus.
Este quadro
devia refletir uma realidade que a comunidade de Lucas conhecia bem…
Jesus veio
trazer a paz, mas a paz que é vida plena vivida com exigência e coerência; essa
paz não se faz com “meias tintas”, com meias verdades, com jogos de equilíbrio
que não chateiam ninguém, mas também não transformam nada.
A proposta de
Jesus é exigente e radical; assim, não pode deixar de criar divisão.
Site da Paróquia de São Luis – FARO – DIOCESE DE ALGARVE – PORTUGAL.
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