SEGUNDO DOMINGO DA
QUARESMA
Ano – B; Cor –
roxo; Leituras: Gn 22,1-2.9-10.15-18; Sl 115; Rm 8,31-34; Mc 9,2-10.
“MESTRE, É BOM
FICARMOS AQUI”. (Mc 9,5).
Diácono
Milton Restivo
A primeira
leitura deste segundo domingo da Quaresma fala do sacrifício de Abraão.
·
“Deus pôs Abraão à prova, e lhe disse:
‘Abraão, Abraão’! Ele respondeu: ‘Estou aqui’. Deus disse: ‘Toma teu filho, o
seu único filho Isaac, a quem você ama, vá à terra de Moriá e ofereça-o aí em holocausto,
sobre uma montanha que eu vou lhe mostrar.” (Gn 22,1-2).
O povo
daquelas terras onde Abraão havia se instalado depois de deixar a casa de seu
pai, costumava sacrificar aos seus deuses o que havia de melhor em sua vida
como a primeira colheita dos frutos dos seus pomares, os primeiros grãos da sua
seara, os primeiros filhotes de suas ovelhas ou de outros animais, chegando ao
cúmulo de, muitas vezes, sacrificar os seus próprios filhos primogênitos.
É a primeira
vez que um sacrifício humano é citado nas Sagradas Escrituras.
Deus quis
provar a fé de Abraão, mas ele deu a Abraão três dias de caminhada para que Abraão
pensasse sobre que atitude deveria tomar.
O monte Moriá distava
oitenta quilômetros de Bersabéia, três dias de caminhada de onde Abraão e sua
família estavam acampados.
Bersabéia era
o centro da vida patriarcal.
Bersabéia
significa “poço de sete ou poço do juramento” e se originou com um pacto entre Abraão
e Abimeleque, rei de Gerar (cf Gn 21,22-34).
Abraão
caminhou pelo deserto durante três dias até o monte Moriá com o seu filho Isaac
e continuou fiel à vontade de Deus.
Muito tempo
depois o rei Salomão edificaria neste mesmo monte Moriá, depois monte Sião, o
Templo de Jerusalém, chamado também Templo de Salomão, (cf 2Cr 3,1) e perto do
monte chamado Gólgota - Calvário - (cf
Jo 19,17) onde, séculos mais tarde Jesus seria crucificado.
No terceiro
dia de caminhada Abraão viu o lugar de longe, e
·
“Abraão tomou a lenha do holocausto e a
colocou nas costas de seu filho Isaac, tendo ele próprio tomado nas mãos o fogo
e a faca.” (Gn 22,6).
Isaac levando
a lenha do holocausto nas costas é o primeiro símbolo nas Sagradas Escrituras
do sacrifício de Jesus: Isaac levou a lenha do seu holocausto nas costas e
subiu o monte Moriá; Jesus levou o lenho do seu sacrifício nas costas e subiu o
monte Calvário.
Abraão levou o
fogo, que simboliza o julgamento, e a faca, figura de castigo e sacrifício.
A obediência
de Isaac em levar a lenha de seu próprio holocausto, sem contestar a ordem de
seu pai Abraão, é o prenúncio da obediência de Jesus à vontade do Pai:
·
“não se faça a minha vontade, e, sim, a
Tua” (Lc 22,42).
Abraão
prosseguiu, sem contestar, a ordem de Yahweh:
·
“Quando chegaram no lugar que Deus lhe
indicara, Abraão construiu o altar, colocou a lenha, depois amarrou seu filho e
o colocou sobre o altar, em cima da lenha. Abraão estendeu a mão e pegou a faca
para imolar seu filho” (Gn 22,9-11).
Mas Deus
impede que Abraão imolasse seu próprio e único filho porque isso contrariaria o
que Yahweh havia dito tempos atrás para Noé e seus filhos:
·
“Vou pedir contas do sangue que é a vida de
vocês; vou pedir contas a qualquer animal; e ao homem vou pedir contas da vida
do seu irmão. Quem derrama o sangue do homem, terá o seu próprio sangue
derramado por outro homem. Porque o homem foi feito à imagem de Deus” (Gn
9,5-6).
Yahweh elogia
a fé e obediência de Abraão:
·
“Agora sei que você teme a Deus, pois não me
recusou seu único filho” (Gn 12b).
Mas, em
contrapartida, o Pai não poupou a vida de seu próprio e único Filho,
entregando-o por todos os homens, como fala Paulo na segunda leitura desta
liturgia:
·
“Ele não poupou seu próprio Filho, mas o
entregou por todos nós” (Rm 8,32).
Yahweh oferece
a Abraão um cordeiro que foi sacrificado no lugar de Isaac.
O cordeiro
oferecido por Yahweh para poupar a vida de Isaac é o símbolo do “Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 12,9), que é o próprio Jesus, o
Cordeiro com o qual Deus Pai nos substitui para morrer por cada um de nós e por
todos nós pelos nossos pecados.
Paulo, imbuído
deste grande amor que o Pai tem pelos homens e convicto de que o Pai não
abandona os que a ele obedece, diz num belo hino de amor de Deus:
·
“O que nos resta dizer: Se Deus está a nosso
favor, quem estará contra nós? Ele não poupou seu próprio Filho, mas o entregou
por todos nós, como não nos dará também todas as coisas junto com o seu
Filho?”. (Rm 8,31-32).
E Paulo
continua falando do amor de Deus aos corintios:
·
“Se alguém está em Cristo é nova criatura. As
coisas antigas passaram; eis que uma realidade nova apareceu. Tudo vem de Deus,
que nos reconciliou consigo por meio de Cristo, e nos confiou o ministério da
reconciliação. Pois era Deus quem reconciliava com ele mesmo o mundo por meio
de Cristo, não levando em conta os pecados dos homens e colocando em nós a
palavra da reconciliação. [...] Aquele que não tinha nada a ver com o
pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que por meio dele sejamos
reabilitados com Deus.” (2Cor 5,17-19.21).
A leitura do
Evangelho transmite-nos a transfiguração de Jesus.
A
transfiguração de Jesus é uma passagem que se encontra em todos os Evangelhos
sinóticos: Lucas 9,28-36, Mateus 17,1-9 e Marcos 9,2-10, mas cada um dos
evangelistas sinóticos trabalhou ao seu modo a narrativa dentro dos objetivos que
lhes eram peculiares e da maneira que acharam melhor para o entendimento de
suas comunidades específicas.
A transfiguração
de Jesus é o ponto culminante da sua vida pública, assim como o seu batismo é o
seu ponto de partida, e sua ascensão aos céus é o seu termo.
Pedro
refere-se a esse glorioso evento na sua segunda carta:
·
“De fato,
não tiramos de fábulas complicadas o que lhes ensinamos sobre o poder e a vinda
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pelo contrário, falamos porque somos testemunhas
oculares da majestade dele. Pois ele recebeu de Deus Pai a honra e a glória,
quando uma voz vinda de sua Glória, lhe disse: ‘Este é o meu Filho amado: nele
encontro o meu agrado’.” (2Pd 1,16-18).
João também,
no seu Evangelho, não deixa passar despercebida a contemplação da glória de
Jesus que foi testemunhada por ele:
·
“E nós
contemplamos a sua glória; glória do Filho único do Pai, cheio de amor e
fidelidade.” (Jo 1,4b).
Então, podemos
dizer que duas das três testemunhas oculares privilegiadas fazem alusão nos
seus escritos à transfiguração de Jesus.
Quando falamos
da Transfiguração de Jesus logo a associamos ao monte Tabor, mas, por incrível
que possa parecer, nenhum dos evangelistas que narra esse episódio cita o fato
como acontecido nesse monte.
Os
evangelistas são unânimes em afirmar que Jesus subiu numa “alta montanha” (Mc 9,2; Mt 17,1), ou apenas “à montanha” (Lc 9,28) sem citar o nome da montanha. Pela narrativa
dos Evangelhos não sabemos que montanha foi essa.
A tradição deu
o nome a essa montanha, identificando-a como sendo o monte Tabor, e isso somente
a partir do século IV. Isso foi dito pela primeira vez por Cirilo de Jerusalém
e por Jerônimo em suas obras literárias.
O monte Tabor não é citado nenhuma vez no Novo
Testamento, mas são encontrados, pelo menos, doze registros do monte Tabor no
Antigo Testamento, a saber: Josué 19,12; 19,22; 19,34; Juízes 4,6; 4,12; 4,14; 8,18;
1 Samuel 10,3; 1 Crônicas 6,62; Salmo 89 (88),13; Jeremias 46,18 e Oséias 5,1.
Nesta narrativa entramos
na segunda parte do Evangelho segundo Marcos e Jesus começa, lentamente, revelar-se.
“
·
Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro,
Tiago e seu irmão João, e os levou sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta
montanha”. (Mc 9,2).
Por que “seis dias
depois”?
Seis dias depois do
diálogo entre Jesus e Pedro, por ocasião em que Pedro fizera sua
profissão de fé, quando Jesus havia perguntado: “E vocês, quem dizem que eu
sou?” tendo respondido Pedro: “Tu és o Messias” (cf Mc 8,27-30). A
partir daí Jesus começa uma catequese aos apóstolos, fazendo três anúncios de
sua paixão (cf Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34), sendo que todos esses anúncios
foram repelidos e contestados pelos apóstolos. A particularidade é que todos
esses anúncios da paixão, apesar de falar de dor e abandono, remetem à
ressurreição.
·
“Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e seu irmão
João...” (Mc 9,2).
Em várias outras ocasiões,
quando Jesus busca refúgio e quer companhia ou testemunhas, chama esses três
apóstolos. Foram esses três, dos quatro primeiros apóstolos chamados por Jesus
para seguí-lo (cf Mc 1,16-20).
Foram, também, escolhidos
para acompanhar Jesus quando da ressurreição da filha de Jairo (cf Mc 5,37).
Também quando Jesus falava
do fim dos tempos foram esses três apóstolos e mais André que se aproximaram,
em particular, até Jesus para perguntar quando isso aconteceria (Cf Mc 13,3-4).
Quando estava próximo de
sua entrega total nas mãos do Pai para levar a cabo sua missão, foram esses
três apóstolos que Jesus escolheu para acompanhá-lo até o monte Getsêmani (cf
Mc 14,33). Para esses acontecimentos Jesus buscou testemunhas, e elas foram,
exatamente, Pedro, Tiago e seu irmão João.
Jesus, com Pedro, Tiago e
João, sobe a uma alta montanha.
A montanha ou lugar
elevado, para os judeus, era o lugar adequado para se comunicar com Deus, pois
entendiam que ali estavam mais próximo de Deus.
Era o lugar ideal para a
oração e recolhimento. Moisés, no Antigo Testamento, para se comunicar com Deus
e receber as tábuas da Lei, subiu a uma montanha (cf Ex 19,16-20).
Subindo a montanha com
três dos seus apóstolos, Jesus ocupa o lugar de Moisés.
Jesus “transfigurou-se
diante deles” (Mc 9,2).
Transfigurar-se é aparecer
em outra forma que não seja a sua própria.
Na Bíblia esta é a única
vez que é usado o termo “transfiguração”.
Para Moisés, foi usado o
termo “resplandecente” para o seu rosto quando desceu da montanha com as tábuas
da Lei:
·
“Quando Moisés desceu da montanha do Sinai,
levou nas mãos as duas tábuas da aliança. Ele não sabia que seu rosto estava
resplandecente, por ter falado com Yahweh.” (Ex 34,29).
Marcos não fala do rosto
de Jesus, mas Mateus diz que:
·
“O seu rosto brilhou como o sol” (Mt 17,2),
E Lucas diz:
·
“Seu rosto mudou de aparência” (Lc 9,29).
Na transfiguração Jesus
deixou transparecer sua natureza divina, aquilo que ele sempre recomendara aos
seus apóstolos que não fosse revelado até que ressuscitasse dos mortos:
·
“Então Jesus proibiu severamente que eles
falassem a alguém a respeito dele.” (Mc 8,30).
E ao descer da montanha,
Jesus faz novamente essa recomendação:
·
“Ao descerem da montanha Jesus recomendou-lhes
que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem
tivesse ressuscitado dos mortos.” (Mc 9,9).
Enquanto estava
transfigurado,
·
“apareceram-lhes Elias e Moisés, que
conversavam com ele.” (Mc 9,4).
Moisés representava a Lei
e Elias os profetas.
No tempo de Jesus havia
uma crença de que Elias estava vivo, não havia morrido, porque
·
“Enquanto estavam andando e conversando (Elias e Eliseu), apareceu
um carro de fogo com cavalos de fogo, que os separou um do outro. E Elias subiu
ao céu no redemoinho.” (2Rs 2,11).
Os judeus estavam no
aguardo da realização da profecia de Malaquias que Yahweh enviaria Elias para
anunciar a vinda do Messias:
·
“Vejam! Eu mandarei a vocês o profeta Elias,
antes que venha o grande e terrível dia de Yahweh.” (Ml 3,23).
Jesus era maior que Moisés
e Elias. Moisés foi o legislador da lei antiga, Jesus, através do seu sangue,
sanciona a Nova Aliança. Elias é o príncipe dos profetas do Antigo Testamento.
Jesus não é mais um profeta, é O Profeta por excelência.
Pedro ficou inebriado,
confuso e estático com o que estava vendo, como disse Lucas no seu evangelho:
·
“Pedro não sabia o que estava dizendo” (Lc 9,33b), mas disse: “Mestre,
é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e
outra para Elias.”! (Mc 9,5).
Nas grandes festas do
povo, quando os judeus afluíam a Jerusalém para as comemorações, as famílias
construíam tendas para ali permanecerem até o final das festividades, como na
festa das Tendas (cf Jo 7,2). Pedro queria que aquele momento não fosse
passageiro e permanecesse até pelo menos quando ele e seus companheiros, Tiago
e João, pudessem entender o que estava acontecendo. Mas eis que, de repente
·
“desceu uma nuvem e os cobriu com a sua
sombra” (Mc 9,7).
O Antigo
Testamento fala de uma nuvem que acompanhava o povo no deserto. Orígenes,
teólogo do século III, fala e diz “No que eles acreditavam ser uma nuvem,
Paulo vê o Espírito Santo”. Não foi isso que Gabriel falou para Maria? “O
Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Altíssimo a cobrirá com a sua
sombra.” (Lc 1,35).
A nuvem
manifesta a presença de Deus como tinha acontecido no Sinai com Moisés (cf Ex
19,16). Mas, ao invés de trovões e relâmpagos que saiam das nuvens, como
aconteceu a Moisés, com Jesus ouviu-se uma voz que saia das nuvens:
·
“da nuvem saiu uma voz: ‘Este é meu Filho
amado. Escutem o que ele diz.” (Mc 9,7).
Esta é a mesma
frase dita pelo profeta Isaias e que foi ouvida depois que Jesus foi batizado e
saiu da água (Is 42,1; Mc 1,11).
O Pai
apresenta o seu Filho único aos três discípulos. O Pai dá a identidade de
Jesus: ele é o Filho amado do Pai. Este é o âmago, o coração do Evangelho de
Marcos.
·
“Escutem o que ele diz”.
As palavras, os
ensinamentos de Jesus têm o pleno aval do Pai.
Isso reafirma
o que Moisés disse ao povo no deserto:
·
“Yahweh seu Deus fará surgir, dentre seus
irmãos, um profeta como eu em seu meio, e vocês o ouvirão” (Dt 18,15).
Moisés disse:
·
“vocês o ouvirão”.
Agora o Pai
diz:
·
“Escutem o que ele diz”.
A ordem do
Antigo Testamento é para o futuro:
·
“vocês o ouvirão”.
A ordem do Pai
é para o presente:
·
“Escutem o que ele diz”.
·
“E, de repente eles olharam em volta e não
viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles”. (Mc 9,8).
Aquele mesmo Jesus que estava preparando seus
discípulos para a sua hora, a hora do Calvário, para a condenação por parte dos
chefes de Israel, é exatamente o “Filho amado” de Deus. Precisamente
ele, não mais Moisés ou Elias, é o Mestre que agora Deus Pai apresenta ao
mundo.
E é a nação eleita, que tinha escutado Moisés e
Elias, que iria cumprir o mais trágico erro judicial: condenar o Filho amado do
Pai ao suplício da Cruz.
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