“QUEM DE VOCÊS QUISER SER GRANDE, DEVE TORNAR-SE O
SERVIDOR DE VOCÊS, E QUEM DE VOCÊS QUISER SER O PRIMEIRO, DEVERÁ TORNAR-SE O
SERVO DE TODOS.” (Mc 10, 43-44).
Diácono Milton Restivo
A primeira leitura, tirada do livro do
profeta Isaías, está dentro do contexto da missão do servo sofredor de Yahweh. Os
cantos do servo sofredor contido em Isaías estão assim distribuídos: primeiro
canto, 42,2-4; segundo canto, 49,1-6; terceiro canto, 50,40-11 e, quarto canto,
53,1-12.
Esta leitura, portanto, contém uma
partícula do quarto canto do servo sofredor de Yahweh.
Mas, quem é o servo sofredor citado por Isaías?
Não é fácil identificar quem seria o
servo sofredor a que se refere Isaías. Não foi sem motivos que, em Atos
8,26-40, o eunuco etíope, ao ler a seguinte passagem do profeta Isaías, ficou
embaraçado: “Ele foi levado como ovelha
ao matadouro. E como um cordeiro diante do seu tosquiador, ele ficava mudo e
não abria a boca. Quem poderá contar seus seguidores? Porque eles o arrancaram
da terra dos vivos.” (Is 53,7-8; At 8,32-33).
Perguntado pelo diácono Filipe se ele
havia entendido o que lia, o eunuco respondeu: “Por favor, me explique: de quem o profeta está dizendo isso? Ele fala
de si mesmo, ou se refere a outra pessoa?” (At 8,34).
Não era fácil
identificar de quem Isaías se referia: se seria ele mesmo, se seria o povo de
Israel, se seria uma pessoa anônima, ou se teria uma interpretação
messiânica.
Essa narração,
porém, parece-se tanto com a descrição feita pelos autores dos evangelhos sobre
os sofrimentos de Jesus no processo de acusação e no dia de sua morte que
Isaías chegou a ser chamado de quinto evangelista.
Se quiséssemos
resumir, numa palavra, o sentido desta primeira leitura, diríamos que aquilo
que, aos nossos olhos, é considerado fracasso, para Deus é tido como vitória,
como diria Paulo, mais tarde: “Os judeus
pedem sinais e os gregos procuram a sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado,
escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. Mas para aqueles que são
chamados, tanto judeus como gregos, ele é o Messias, poder de Deus e sabedoria
de Deus. A loucura de Deus é
mais sábia do que os homens e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.
[...] Mas, Deus escolheu o que é
loucura no mundo, para confundir os sábios; e Deus escolheu o que é fraqueza no
mundo para confundir o que é forte. E aquilo que o mundo despreza, acha vil e
diz que não tem valor, isso Deus escolheu para destruir o que o mundo pensa que
é importante”. (1Cor 1,22-25.27-28).
Nos escritos do Novo Testamento os
autores sagrados voltam seus olhares para a realização perfeita dessa profecia
do servo sofredor na pessoa de Jesus, conforme vemos na explicação de Filipe ao
eunuco etíope: “Então Filipe foi
explicando. E tomando essa passagem da Escritura como ponto de partida,
anunciou Jesus ao eunuco. [...] O
eunuco respondeu: ‘Eu acredito que Jesus Cristo é o Filho de Deus.” (At
8,35.37).
A segunda leitura, a carta aos Hebreus
deixa claro que, se hoje “temos um sumo
sacerdote eminente, que entrou no céu, Jesus, o Filho de Deus”, e que ele “é capaz de se compadecer de nossas
fraquezas”, foi porque, antes se ser levado à glória junto ao Pai, Jesus se
submeteu a tudo àquilo que o servo sofredor de Isaías se propôs “pois ele mesmo foi provado em tudo como
nós, exceto no pecado.” (Hb 4,14-15).
Jesus, antes de ser “o sumo sacerdote eminente que entrou no céu”, foi, antes de tudo,
o servo sofredor cantado por Isaias, que é “capaz
de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como
nós.”
Jesus não fez
de conta que era um homem, mas foi homem de verdade, na sua totalidade, de
fato, assumindo todas as consequências da natureza humana, tendo enfrentado
todas as vicissitudes pelas quais nós passamos e, como homem, se tornado servo
de todos, como ele mesmo diz no Evangelho: “O
Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida como
resgate para muitos”. (Mc 10,45).
E agora, como
sumo sacerdote, Jesus é o pontífice, isto é, aquele que construiu a ponte para ligar
o homem ao Pai. Jesus é o mediador entre nós e o Pai e, por isso, “aproximemo-nos então, com toda a confiança,
do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um
auxílio no momento oportuno”. (Hb 4,16).
Na sequência, o episódio narrado no
Evangelho de hoje, vem em seguida ao terceiro anúncio da Paixão. Os
evangelistas sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) registram três “anúncios da
Paixão”, que são feitos na caminhada rumo a Jerusalém, indo Jesus ao encontro
das multidões de peregrinos que para aí acorriam para cumprir a observância da
celebração anual da Páscoa, no templo. E essa Páscoa, segundo os Evangelhos
sinóticos, seria a última de Jesus; então ele estava a caminho do supremo
sacrifício. Depois de cerca de três anos de convivência com Jesus, vendo e
participando dos ensinamentos, milagres e sinais que Jesus dava, fazia e
realizava, os discípulos ainda manifestavam incompreensão em relação à boa nova
de Jesus.
É João, logo João, o chamado “discípulo
amado”, um dos discípulos mais próximos de Jesus e seu irmão Tiago, que
manifestam suas aspirações de estarem à direita e à esquerda de Jesus, como
primeiro e segundo ministros do império que eles julgavam que Jesus viera para
que se tornasse realidade ao final da jornada que eles faziam rumo a Jerusalém,
e que ali, em Jerusalém, Jesus se revelaria o Messias esperado pelos judeus e assumiria
o poder esperado por todos, expulsando os romanos, dominadores do povo.
Então, pensou João, antes que isso
aconteça e antes que alguém pleiteie essa posição, deixe que eu e meu irmão nos
antecipemos. Tiago
e João se aproximam de Jesus de modo ousado, determinante e imperativo e lhe
falam: “Mestre, queremos que faças por
nós o que vamos pedir. [...] Deixa-nos
sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua
glória!” (Mc 10, 35.37).
Tal atitude se
parece com a nossa, quando nos dirigimos ao Senhor. Porque não pedimos que se
faça a vontade de Deus, mas a nossa. Por isso Jesus lhes responde: “Vocês não sabem o que estão pedindo” (Mc
10,38). A exemplo de João e Tiago, não sabemos o que pedimos.
O mais interessante
é que o evangelista diz que “quando os
outros dez discípulos ouviram isso, indignaram-se com Tiago e João.” (Mc
10, 41). Porque ficaram com raiva? Não
porque achavam sem sentido o pedido dos dois, mas porque, no fundo, cada um
deles queria ter o lugar de honra e poder nesse suposto reino terrestre que
Jesus iria assumir.
O vírus de dominação é mais do que
contagioso. Essa
indignação não foi porque os dois irmãos fizeram um pedido fora de propósito ao
Mestre, mas sim porque eles fizeram esse pedido antes que eles mesmos tivessem
tempo de fazê-lo; os irmãos, simplesmente, se anteciparam ao desejo de poder
dos demais discípulos; daí a causa da indignação.
Que paciência que Jesus teve de ter; a mesma paciência
que uma mãe tem para um filhinho de dois anos. Afinal de contas, que faixa
etária na fé estariam os discípulos na oportunidade no seguimento de Jesus?
Apenas pouco mais de dois anos de caminhada com Jesus. Não haviam amadurecido
na fé. Jesus, além de ser Mestre, é amigo, pai e mãe. Jesus, com a maior calma
e maternalmente, chama a atenção dos discípulos e diz: “entre vocês não devem ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve
tornar-se o servo de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá
tornar-se o servo de todos”. (Mc 10,43-44), e, continuando, ele mesmo dá o
exemplo: “porque o Filho do Homem não
veio para ser servido. Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate
em favor de muitos”. (Mc 10,45).
Ser discípulo de Jesus é ter o mesmo ideal, a mesma
prática do que ele! O texto torna-se muito atual para os dias de hoje.
Hoje em dia vivemos num mundo de competição. Cada qual
quer se destacar mais que o outro. Em qualquer lugar onde existe mais de uma
pessoa, uma quer se destacar mais que a outra, quer ser melhor e mais
importante e ocupar o melhor lugar, ainda que isso implique em pisar na outra
pessoa. Isso acontece na família, na sociedade, no trabalho, no comércio, nas
entidades desportivas ou de classe.
As pessoas querem sempre aparecer, querem estar sempre
em evidência. Querem
sempre se destacar das demais. Se praticarem um esporte, querem sobrepujar aos
demais. Se vão a uma festa, querem se apresentar sempre melhores vestidos e
ocuparem os melhores lugares e serem notados por todos. Se vão a uma reunião,
querem ocupar lugares de destaque. No trabalho tudo fazem para que o patrão
note seus esforços, não importando se, para serem promovidos, pisem e maltratem
seus colegas de trabalho, tenham de falar mal ou desprestigiar o trabalho dos
outros.
Todos querem ocupar o primeiro lugar. Todos querem ser
notados. Isso é inerente à natureza humana. No tempo de Jesus não era
diferente, como nunca foi diferente na história da humanidade.
A doutrina de Jesus contraria o modo de
pensar do mundo como disse Paulo: “Mas, Deus escolheu o que é
loucura no mundo, para confundir os sábios; e Deus escolheu o que é fraqueza no
mundo para confundir o que é forte.” (1Cor 1,27).
O mundo incita que se ocupem os
primeiros lugares onde quer que se esteja, e os Apóstolos de Jesus, inebriados
com as coisas do mundo e julgando que no céu seria a mesma coisa, em outra
ocasião, perguntam ao Mestre: “Quem é o
maior no Reino dos Céus?” (Mt 18,1).
O mundo deixa claro que só são
importantes aqueles que ocupam os primeiros lugares, e aí vem Jesus e diz: “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o
último de todos e o servo de todos.” (Mc 9, 35). O mundo prega a ganância,
o orgulho, a vaidade; Jesus prega a humildade, a simplicidade, a caridade, o
amor. Nada se faz nesse mundo que não se objetive lucros, retornos ou
retribuições; tudo o que se faz é por interesse, e muitas vezes, interesses escusos,
e, por isso, Jesus adverte: “Ao dar um
almoço ou jantar, não convide seus amigos, nem seus irmãos, nem seus parentes,
nem os vizinhos ricos; para que não lhe convidem por sua vez e lhe retribuam do
mesmo modo. Pelo contrário, quando você der uma festa, chame pobres,
estropiados, coxos, cegos; feliz você será, então, porque eles não tem como lhe
retribuir. Você será, porém, recompensado na ressurreição dos justos.” (Lc
14,12-14). A força do cristão está na simplicidade, caridade, na humildade.
É no trabalho e no serviço aos irmãos
que o cristão encontra sentido da vida que busca.
Quem quiser ser o maior no reino dos
Céus deve ser o primeiro a servir os irmãos, a valorizar os irmãos, a respeitar
os irmãos, a se colocar ao serviço dos irmãos, porque, no dizer de Jesus, “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o
último de todos e o servo de todos.” (Mc 9, 35).
O mundo jamais saciará aqueles que
atendem ao seu convite de serem importantes aos olhos dos homens porque o mundo
sempre vai exigir que se queira mais e mais e mais.
Os ensinamentos de Jesus são exatamente
ao contrário do que ensina o mundo. O mundo diz: “Se você quer ser o primeiro não se preocupe em espezinhar o outro, a
mentir, a levantar falso testemunho, a ser infiel, não dê chances às pessoas
que você não gosta e que você julga ser seu inimigo; não se preocupe com a
opinião dos outros, o importante é você ser o primeiro em tudo a qualquer
custo”. Jesus vem e diz: “... se quiser ser o primeiro, seja o último
e o servo de todos.” (Mc 9,35). “Dou-lhes
um mandamento novo: que se amem uns aos outros. Nisso reconhecerão todos que vocês
são meus discípulos, se tiverem amor uns pelos outros.” (Jo 13, 34-35).
Antes de advertir João, Tiago e todos os
demais discípulos, Jesus fala o óbvio: “aqueles
que se dizem governadores das nações tem poder sobre elas, e os seus dirigentes
tem autoridade sobre elas” e isso os coloca em posição de destaque e tendo
direto às mordomias inerentes ao cargo que ocupam e, carinhosamente, lhes
orienta: “mas, entre vocês não deverá ser
assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e
quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos” e
acrescenta ainda, explicando
melhor a lição que lhes quer dar, dando o
exemplo: “porque o Filho do Homem não
veio para ser servido. Ele veio para servir e dar a sua vida como resgate em
favor de muitos.” (Mc 10, 42-45).
Jesus uniu tais palavras ao
gesto, ao exemplo quando, na última ceia, lavou os pés dos discípulos: “Jesus se
levantou da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura.
Colocou água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando com a
tolha que tinha na cintura”.
Com certeza, o espanto foi geral. Ao pegar a bacia e
toalha, Jesus assumiu a função de um servo, agia como um escravo. Mais
complicado ainda: exercia uma atividade que um judeu, mesmo na condição de
servo, não aceitava fazer. Pedro reagiu a seu modo: “tu não vais lavar os meus pés nunca”. Só aceitou a contra gosto,
quando viu que não ia convencer Jesus do contrário.
Ao terminar e “depois de
lavar os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto, sentou-se de novo, e
perguntou: ‘Vocês compreenderam o que eu acabei de fazer? Vocês dizem que eu
sou o Mestre e o Senhor. E vocês tem razão; eu sou mesmo. Pois bem, eu que sou
o Mestre e o Senhor, lavei os seus pés; por isso vocês devem lavar os pés uns
dos outros”.
E ai vem o grande
ensinamento: “Eu lhes dei um exemplo:
vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz. Eu garanto a vocês: o servo não é
maior que o seu senhor, nem o mensageiro é maior do que aquele que o enviou. Se
vocês compreenderam isso, serão felizes se o puserem em prática.” (Jo 13,4-17).
Jesus propõe aos discípulos um novo
jeito de pensar e agir. “Se alguém quer
ser o primeiro, deverá ser o último, e ser aquele que serve a todos” (Mc 9,
35).
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