XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM
“MEU DEUS, TEM PIEDADE DE MIM, QUE SOU PECADOR”. (Lc 18,9-14).
Diácono
Milton Restivo
A citação chave
sobre a missão de Jesus no nosso meio está contida em Lucas 19,10: “De fato, o Filho do Homem veio procurar e salvar
o que estava perdido”.
Ao apresentar
Jesus como aquele que o Pai enviara para “procurar
e salvar o que estava perdido”, Lucas inclui passagens no seu evangelho de
pessoas discriminadas que não são narradas nos demais evangelhos, como o relato
da mulher considerada pecadora que adentra a casa de um fariseu durante uma
refeição para lavar os pés de Jesus com suas lágrimas e os enxugar com seus cabelos
(Lc 7,36-50); a parábola do fariseu e o publicano que se dirigem ao Templo para
rezar, que meditaremos hoje (Lc 18,9-14); a história do publicano Zaqueu que
queria ver Jesus, (Lc 19,1-10), e o perdão do ladrão na cruz, (Lc 23,39-43).
Essas narrativas
só se encontram no Evangelho segundo Lucas.
No Evangelho de
Lucas Jesus está sempre se relacionando com publicanos, pecadores, doentes,
leprosos, mulheres, gentios, samaritanos, viúvas, pobres ou crianças, que eram
menosprezados, discriminados e considerados, pelos fariseus e doutores da Lei
como malditos por não terem acesso à Lei de Moisés que somente era conhecida
pela classe elitizada: “Maldito seja
aquele que não mantém as palavras desta Lei, não pondo-as em prática”. (Dt
27,26; Gl 3,10).
Todas essas
classes de pessoas eram desprezadas pela sociedade elitizada judaica que achava
simplesmente um absurdo que um mestre judeu se preocupasse em estar na presença
e companhia de algumas dessas pessoas, e se escandalizavam quando Jesus delas
se aproximava: “Todos os cobradores de
impostos e pecadores se aproximavam de Jesus para o escutar. Mas os fariseus e
os doutores da Lei criticavam Jesus, dizendo: ‘Esse homem acolhe pecadores e
come com eles”. (Lc 15,1-2). Os publicanos eram os judeus que coletavam
impostos dos seus conterrâneos e os entregava a Roma, Os publicanos eram,
portanto, os cobradores de impostos do povo opressor.
No tempo de
Jesus a Palestina estava sendo dominada e pertencia ao Império Romano. Por
isso, os judeus pagavam impostos ao Imperador e, como Roma não os pagava pelo
trabalho, eles tinham que cobrar a mais para tirar daí o seu saldo e, por isso,
eram odiados pelos judeus porque cobravam impostos de seus compatriotas em
favor dos seus dominadores. Aproveitavam-se, muitas vezes, da sua função para
impor multas desonestas, roubando o povo. Por isso, eram odiados e tidos como
ladrões.
O sistema de
recolhimento de impostos era sujeito a abusos. Roma franqueava ao cobrador de
impostos, também chamado “publicanos”, uma determinada área geográfica, pela
qual eles seriam responsáveis para arrecadarem impostos, estipulando-lhe a
quantia anual que deveria ser recolhida, mas estes cobravam taxas bem
superiores ao estipulado ficando com o excedente.
Alguns
coletores aceitavam suborno dos ricos diminuindo a taxa deles e sobrecarregando
os pobres para compensar.
O povo sentia-se
massacrado com tantos impostos. Os judeus não aceitavam o fato de que um irmão
estivesse trabalhando para os usurpadores. Além do mais, carregaram a triste
fama de que cobravam acima do devido para beneficiar-se, pelo qual João Batista
os admoesta: “não cobrem nada além da
taxa estabelecida” (Lc 3,13). Os judeus os consideravam fora do padrão
religioso, por terem muito contato com gentios e traidores da nação; por estas
razões eram extremamente menosprezados social e religiosamente.
Os publicanos,
para os judeus, eram o que de pior, de menos moral se podia encontrar. Mas
Jesus era amigo deles porque “as pessoas
que têm saúde não precisam de médico, mas só as que estão doentes”. (Lc
5,31).
Aqueles a quem
os mestres judeus consideravam como castigados, desprezados, ou desvalorizados
por Deus eram justamente para eles a quem Jesus investia seu tempo porque: “De fato, o Filho do Homem veio procurar e
salvar o que estava perdido”. (Lc 19,10).
Os fariseus e
doutores da Lei ficaram ainda mais irritados quando Jesus, corajosamente lhes
diz: “Pois eu garanto a vocês: os
cobradores de impostos e as prostitutas vão entrar antes de vocês no Reino do
Céu”. (Lc 21,31b).
Em uma conversa
que teve com os fariseus sobre a missão de João Batista, Jesus enaltece a
conversão dos cobradores de impostos que aceitaram a proposta de salvação, e
condena a hipocrisia e a intolerância dos fariseus e dos doutores da Lei que se
julgavam santos e sábios e desprezavam os demais e se fecharam para o projeto
de Deus: “Todo o povo, e até mesmo os
cobradores de impostos deram ouvidos à pregação de João. Reconheceram a justiça
de Deus, e receberam o batismo de João. Mas os fariseus e os doutores da Lei,
rejeitando o batismo de João, tornaram inútil para si mesmos o projeto de
Deus”. (Lc 7,29-30). Por isso os fariseus e mestres da Lei estavam em
constante conflito com Jesus, porque ele mostrava amizade, amor e respeito a
quem eles, os fariseus e doutores da Lei, achavam que não tinham valor algum.
Muitos publicanos
se converteram e, dentre eles, os mais famosos foram Mateus, que foi chamado a
ser apóstolo de Jesus (Mt 10,3; Lc 5,27-32) e Zaqueu (Lc 19,1-10), confirmando
aquilo que Jesus dissera: “Eu não vim
para chamar justos, e sim pecadores para o arrependimento”. (Lc 5,32).
Estes eram os publicanos, os cobradores de impostos, ou ainda, os pecadores
públicos.
E os fariseus,
quem eram?
Os fariseus
eram homens religiosos e que viviam no tempo de Jesus.
Eram extremamente
orgulhosos e se consideravam perfeitos e “santos” simplesmente por cumprirem
as determinações da Lei de Moisés que orientava a religião judaica. Gostavam de
discutir sobre assuntos espirituais. Estavam sempre em litígio com Jesus. Consideravam
suas interpretações como as únicas certas e não admitiam que alguém pudesse
saber da Lei de Moisés mais do que eles. Eram vaidosos pela antiguidade de sua
seita religiosa. Tratavam os partidários das outras crenças e seitas com ódio e
desprezo, como, infelizmente, temos ainda no nosso meio seitas que se dizem
cristãs combatendo e odiando seitas que se autodenominam cristãs. Achavam que
“religião” era somente a prática de cerimônias nas sinagogas e no Templo.
Templo só havia
um, o de Salomão, em Jerusalém.
Os fariseus
eram, quase sempre, cheios de vícios e erros, mas, fingiam, por palavras e
atitudes, que eram corretos e santos. Para o fariseu Deus não era um pai
misericordioso, mas um fiscal que escreve nos seus livros todos e cada um dos
méritos, que ele, fariseu, tinha como fruto do seu esforço e da sua observância
legal.
Além da
característica mais marcante de um fariseu, que Jesus mencionou muitas vezes –
a hipocrisia –, ainda havia outra coisa que era própria de um fariseu: sua
grande erudição, seu enorme conhecimento sobre a Lei de Moisés. Mas, ao invés
desse enorme conhecimento conduzi-los à verdade, grande parte deles seguia por
um caminho totalmente errado. Tanto é que Paulo, o maior fariseu de todos os
tempos, reconheceu esse fato depois de ter-se convertido para o cristianismo, tendo
escrito aos coríntios: “o conhecimento envaidece; é o amor que constrói”. (1Cor 8.1b).
Os fariseus
tinham uma visão própria da Lei e do que é conforme ou contrário a ela, e
consideravam condenados e irremediavelmente perdidos todos os que não se
conformavam com sua rígida interpretação da Lei.
Os pecadores,
em resumo, eram para os fariseus todos os que não seguiam suas tradições e
imposições, que foram violentamente condenadas por Jesus, principalmente nos “ai de vocês, doutores da Lei e fariseus
hipócritas”, proferidos por Jesus contra eles, que se encontram no
Evangelho segundo Mateus, 23,13-36 que, para entender melhor, seria bom ler
essa passagem.
Quantos
fariseus hipócritas existem no nosso meio que, por cumprirem rituais e julgar
serem conhecedores da lei, desprezam o irmão que, como eles, não teve
oportunidade de se aperfeiçoar nas coisas de Deus e continuam nos seus erros
por omissão daqueles que, ao invés de criticá-los, deveriam ser luz para
iluminar os seus caminhos.
Esclarecido
isso e conhecendo o que seja o publicano ou cobrador de impostos e o fariseu, a
intenção de Jesus nessa parábola torna-se mais clara.
E Jesus começa
essa parábola se dirigindo aos fariseus, conforme narra Lucas: “Para alguns que confiavam na sua própria
justiça e desprezavam os outros, Jesus contou esta parábola...”. (Lc 18,9).
O termo “desprezavam os outros” quer dizer literalmente
“consideravam os outros como nada”. E
Jesus inicia a parábola, dizendo: “Dois
homens subiram ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro era cobrador de
impostos”. (Lc 18,10).
Os dois homens
são representantes de duas classes distintas e antagônicas: o fariseu
representando os arrogantes, os que se julgam conhecedores, defensores e
praticantes da Lei, os que se julgam santos, os que desprezam os outros que não
agem como ele; o publicano ou cobrador de impostos, os transgressores da lei,
os desprezados, os pecadores públicos, os que já estão, antecipadamente,
condenados à danação eterna. E Jesus sabia que os seus ouvintes entendiam dessa
maneira. O fariseu, colocando-se em atitude de dignidade, de superioridade e de
supremo orgulho, “de pé, rezava no seu
íntimo”, isto é, rezava de si para si próprio.
Ao perceber, ao
seu lado, a presença do publicano, o fariseu assumiu uma atitude de
superioridade, e começou uma oração encharcada de orgulho que jamais alcançaria
os ouvidos de Deus, como que se dissesse: eu sou o bom, eu sou o melhor, eu sou
o santo, porque: “eu não sou como os
outros homens, que são ladrões, desonestos, adúlteros” e, olhando para o
lado onde estava o publicano: “nem como
esse cobrador de impostos” que é um infeliz, pecador, condenado ao fogo
eterno. E continuando na sua oração, começa a colocar um rosário de coisas que
fazia como que para obrigar a Deus a ficar seu devedor: ‘Eu faço jejum duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha
renda”. Será que ainda existem fariseus nos nossos dias? Os que julgam que
rezam o terço todos os dias, que não perdem uma reunião de grupo, que não
faltam às missas dominicais, os que pagam religiosamente o dízimo, e que se
julgam que já estão salvos por isso, e que Deus tem a obrigação de atendê-los
porque, afinal das contas, com isso, eles têm crédito com Deus?
Assim agiu o
fariseu da parábola: cheio de orgulho, de pretensão, porque ele não era um
homem de se misturar com a multidão de adoradores que não foram feitos para
merecer a sua companhia. A atitude do fariseu foi a de desfilar os seus
pretensos méritos diante de Deus e informando aos céus as suas virtudes e o
débito que Deus tinha com ele: “Ò Deus,
eu te agradeço por que não sou como os outros homens...”.
Não havia
nenhum sentimento de humildade do que ele devia a Deus, nem agradecimento por
tudo o que Deus fizera ou fazia por ele.
O fariseu demonstrava
uma atitude orgulhosa, primeiro de tudo, pela sua postura. Estava em pé, sem
dúvida, tinha olhado rapidamente ao redor de si para ter certeza de que alguém
estava perto para observar a sua postura e ouvir como ele era maravilhoso.
Não somente
estava de pé, mas, como Jesus o descreve: “orava assim no seu íntimo”, ou seja, de si para si mesmo. Ele
estava mais preocupado em lembrar-se de suas virtudes, e com aqueles que o
ouviam, do que estava em falar com Deus.
Por sua vez, o
publicano, cabisbaixo, em atitude de humildade, de contrição, mantendo-se
afastado porque sentia-se indigno de unir-se ao resto dos adoradores no Templo,
e batia no peito.
Na cultura
judaica, bater no peito era um sinal externo de demonstrar a dor na alma.
O publicano
reconhecia sua natureza pecaminosa e estava angustiado por isso.
O fariseu
chegou diante do Senhor falando de sua vida e de como ele era bom e de quantas
boas obras tinha feito.
O publicano
veio, com mãos vazias, confessou sua vida cheia de erros. Ele não tinha nada
para apresentar. Somente uma coisa ele queria: perdão pelos seus pecados e
salvação que só Deus pode dar.
A posição do
publicano era tímida e humilde e o seu pensamento não era outro senão se
colocar na presença de Deus “e nem se
atrevia a levantar os olhos para o céu” e recitar um ato de contrição: “eu pecador me confesso a Deus todo
Poderoso...” porque estava dolorosamente consciente de sua culpa, seu
pecado e envergonhado de suas ações.
O publicano não
tinha nenhum mérito a exibir; a única coisa clara que ele tinha é a consciência
do seu pecado, e expressa isso, como Davi, se sentindo o maior dos pecadores
que suplica ao Senhor: “Tem piedade de
mim, ó Deus, por teu amor! Por tua grande compaixão, apaga a minha culpa!
Lava-me da minha injustiça e purifica-me do meu pecado! Porque eu reconheço a
minha culpa, e o meu pecado está sempre na minha frente; pequei contra ti,
somente contra ti, praticando o que é mau aos teus olhos”. (Sl 51 (50),3-6a).
Mas, o
publicano apenas disse em sua oração: “Meu
Deus, tem piedade de mim que eu sou um pecador’. (Lc 18,13).
Se formos
contar as palavras ditas pelo fariseu e pelo publicano em suas orações, vamos
ficar estupefatos. Na tradução da Bíblia edição Pastoral, que tenho em mãos
neste momento, contei trinta e nove palavras do fariseu na sua oração cheia de
orgulho e prepotência.
Em
contrapartida, na oração do publicano, contei apenas nove...
Não são o
número de palavras que usamos nas nossas orações que farão com que Deus seja
propício aos nossos rogos; são, sim, as palavras sinceras.
A respeito
disso Jesus já nos chamou a atenção: “Quando
vocês rezarem, não sejam como os hipócritas, que gostas de rezar de pé nas
sinagogas e nas esquinas para serem vistos pelos homens. Eu garanto a vocês: já
receberam a sua recompensa. Ao contrário, quando você rezar, entre no seu
quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente; e o seu Pai que vê o
escondido, recompensará você”. (Mt 6,5-6).
No final da
parábola Jesus define quem saiu justificado do Templo.
Não foi o
fariseu que recitou trinta e nove palavras apenas para se vangloriar e deixar
subentendido que Deus lhe era devedor, pois que ele fazia mais do que a Lei de
Moisés pedia.
Foi, sim, o
publicano que de cabeça baixa, batendo no peito, se sentindo o último dos mortais,
pedindo clemência ao Senhor e se reconhecendo pecador que, com apenas nove
palavras foi ouvido em sua prece.
E Jesus termina a parábola com uma frase que todos
conhecemos, mas relutamos em pô-la em prática: “Quem se eleva será humilhado e quem se humilha será exaltado”. (Lc
18,14b).
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