XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM
Ano – B; Cor – Verde; Leituras: Gn
2,18-24; Sl 127; Hb 2,9-11; Mc 10,2-16
“O QUE DEUS UNIU, O HOMEM NÃO SEPARE.” -
(Mc 10,2-16).
Diácono Milton Restivo
Desta feita, o campo de batalha escolhido pelos
fariseus para tentar Jesus foi o debate sobre o divórcio que, entre os judeus e
na Lei de Moisés facultava ao homem dispensar a sua mulher pelo motivo mais
insignificante que fosse e por aquilo que o homem julgasse conveniente, como,
por exemplo, chegar à conclusão que não gostava mais dela.
O texto de referência, para eles, estava no livro do
Deuteronômio, onde não se trata da legitimidade do divórcio, mas dos critérios
para que possa acontecer:
·
“Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o
matrimônio, se depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa
inconveniente, escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela,
deixando-a sair em liberdade” (Dt
24,1).
Essa “coisa
inconveniente” seria as causas prováveis de divórcio como: se uma mulher saísse
à rua sem cobrir a cabeça ofendia de tal modo os bons costumes que o marido
tinha o direito, inclusive o dever religioso de expulsá-la de casa e
divorciar-se dela, sem estar obrigado a pagar-lhe a soma combinada no contrato
matrimonial; se a mulher perdesse seu tempo na rua, falando com outras mulheres
(porque a mulher não podia conversar com homens que não fosse seu marido ou
seus familiares), ou que se punha a fiar na porta de sua casa, podia ser
repudiada por seu marido sem qualquer compensação econômica.
Segundo o rabi Hille, “inclusive quando a esposa
tivesse deixado a comida se queimar”, podia ser repudiada pelo marido com o
divórcio.
No tempo de Jesus a mulher judia era considerada em
tudo inferior ao homem.
Há uma expressão, uma espécie de fórmula, que se
repete com frequência e expressa o descaso e desapreço com que a mulher era
tida: mulheres, escravos, crianças.
Como o escravo não judeu e o filho menor de idade, a
mulher era propriedade e pertencia completamente ao seu dono: ao pai, se fosse
solteira, ao marido, se fosse casada.
O pai, em caso de dificuldade financeira, podia vender
sua filha como escrava quando ela tivesse entre seis e doze anos e meio de
idade, conforme consta no livro do Êxodo 21,7.
Depois de casada a mulher era propriedade do marido,
se fosse casada. Se ficasse viúva e sem
filhos, ela passaria a pertencer ao cunhado mais velho conforme consta em
Deuteronômio 25,5-10 e conforme consta do
Evangelho de Marcos 12,18-27.
Os fariseus, aqueles que se julgavam os donos da verdade,
os doutores da lei e conhecedores incontestáveis da Lei de Moisés, não perderam
a oportunidade de tentar Jesus, então,
·
“se
aproximaram de Jesus. Queriam tentá-lo e perguntaram se a Lei permitia um homem
se divorciar de sua mulher.” (Mc
10,2).
Mateus, em 19,1-9, esclarece melhor que Marcos o
sentido do debate.
O pano de fundo dessa discussão era os critérios
necessários para que um homem pudesse divorciar de sua mulher. Nem se cogitava
na Lei judaica que a mulher pudesse, por sua iniciativa, divorciar-se do
marido, pois a mulher era considerada objeto e propriedade ao homem!
Nesses dois evangelhos Jesus recusa-se a entrar no
debate legalista que cercava a questão, e limitou-se apenas em reafirmar o
projeto inicial do Pai para o casamento:
·
“Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve
separar”. (Mc 10,9).
O evangelho ressalta o valor perene da família, como
dom de Deus. Jesus, partindo do projeto original do Criador, mostra o sentido
do matrimônio, que se expressa na igualdade e entrega total e duradoura,
conforme afirmativa de Deus na criação do homem e da mulher:
·
“Yahweh disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como
nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os
animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a
terra.” Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e
mulher ele os criou. Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos,
multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar,
as aves do céu e todos os animais que sobre a terra.” (Gn 1,26-28);
·
“Por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe, e se une
à sua mulher, e eles dois se tornem uma só carne”, (Gn 2,24).
Na fonte originária do
amor, no gesto criador de Deus, o homem e a mulher encontram a motivação para
se realizarem no amor recíproco, na ajuda mútua. O homem e a mulher são
chamados a formar “uma só carne”, vivendo uma relação humana segundo a vontade
de Deus.
A união conjugal não é
um simples contrato legal, mas uma aliança estável semelhante àquela que o
mesmo Deus firmou com seu povo.
A primeira leitura diz que:
·
“Yahweh Deus modelou, então, do solo, todas as feras
selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as
chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nome
a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens, mas, para o
homem, não encontrou a auxiliar que lhe correspondesse.” (Gn 2,19-20).
Interessante! Dentre todas as criaturas criadas depois
do homem, nenhuma se encaixou como “a
auxiliar que lhe correspondesse.”
·
“Yahweh Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou
fazer uma auxiliar que lhe corresponda”. ... Então Yahweh Deus fez cair um
torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer
carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Yahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então
o homem exclamou: “Esta sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne! Ela
se chamará mulher’, porque foi tirada do homem. Por isso o homem deixa seu pai
e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne” Gn 2, 21-24).
A palavra original nos textos bíblicos que para nós
foi traduzida como “auxiliar” é
traduzida também como “companheira”,
que seria o termo mais correto, considerando que “auxiliar” sugere
subordinação, que não é o caso, e “companheira” é alguém que divide com o homem
as suas responsabilidades e tem tantas
obrigações e direitos quanto o homem.
Na criação do homem Deus sentiu a necessidade de lhe
fazer uma companheira que, como ele, fosse superior a todas as demais criaturas
já criadas, que se igualasse ao homem em dignidade e que, com o homem, fosse
dividida a responsabilidade de zelar das coisas que o Senhor havia criado e
dado direitos e obrigações de delas cuidar.
Primeiro Deus
·
“... modelou, então, do solo, todas as feras selvagens
e todas as aves do céu... ...mas, para o homem não encontrou a auxiliar (companheira)
que lhe correspondesse.” (Gn, 2, 19-20).
Em sua sabedoria infinita, Yahweh chegou à conclusão
que não poderia dar ao homem, como companheira, um ser inferior e irracional,
por isso, tirou do próprio homem, do humano, do seu próprio corpo, mais
precisamente de uma costela, do lado do seu coração, um pedaço para modelar a
mulher, aquela que seria a sua companheira por toda a vida e,
·
“Por isso o homem deixa seu pai e sua mãe, se une à
sua mulher, e eles se tornam uma só carne.” (Gn 2, 24; Mc 10,7-8).
O escritor do primeiro livro das Sagradas Escrituras
deixa transparecer uma sensibilidade que motiva a reflexão sobre como a mulher
começou a existir.
O interesse do autor bíblico seria precisamente resgatar
a mulher que, na sociedade primitiva, patriarcal e machista, era totalmente
ofuscada, dominada, colocada sempre em plano secundário e considerada objeto e propriedade
do homem, como vimos acima.
A mulher não foi feita do barro, da lama, como o
homem; a sua matéria prima foi algo mais nobre e digna: um pedaço do próprio
homem.
E esse pedaço do homem não foi tirado do pé, para que
se dissesse que o homem dominaria sobre a mulher ou pisaria na mulher; também
não foi tirada da cabeça, para que se pudesse entender que a mulher seria algo
mais importante e superior ao homem, e que mandasse no homem.
As Escrituras narram que a mulher foi tirada da
costela do homem, do peito do homem, do lado do coração do homem, para que
ambos fossem tocados pelos mesmos sentimentos, ideais, objetivos e realizações:
·
“Então Yahweh Deus fez cair um torpor sobre o
homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu
lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Yahweh Deus modelou uma mulher e
a trouxe ao homem”. (Gn 2, 21).
Costela significa “vizinho ao coração”. De onde
ser a mulher “um ser igual, mas distinto do homem”. O termo costela conduz
ainda à idéia de reciprocidade.
A mulher é aquela que está ao lado e não detrás do
homem. Um está ao lado do outro.
Convém repetir e salientar ainda que ambos, homem e
mulher, são criados por Deus.
O homem é criado da terra, e a mulher do humano, do
homem que já se encontra formado pelas mãos do próprio Deus.
O homem não cria a mulher e a mulher não veio do barro.
Deus é quem faz a mulher a partir do homem, do humano.
·
“Deus os abençoou e lhes disse: “Sede
fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes
do mar, as aves do céu e todos os animais que sobre a terra.” (Gn 1, 28).
Tanto o homem quanto a mulher recebem uma mesma ordem
de Deus - a de dominar - porque têm uma mesma identidade, e esta identidade é a
de terem sido criados à imagem e semelhança do seu Criador.
A mulher, do seu jeito, é, juntamente com o homem,
imagem e semelhança de Deus. É isto que constitui a humanidade no mundo.
A mulher não é complemento do homem, ou o homem
complemento ou superior à mulher; cada um é uma totalidade, com características
próprias e específicas.
O primeiro relato da criação humana indica a igualdade
entre homem e mulher, visto que estes são imagem e semelhança de Deus.
A afirmativa de Jesus: “O que Deus uniu o homem não separe”, está alicerçada na criação do
primeiro casal: homem e mulher.
O homem necessitava de uma companheira e essa
companheira foi tirada e criada do próprio ser do homem, portanto, o homem não
tem poder e nem autoridade de desautorizar uma atitude de amor de Deus.
A união conjugal surgiu com a criação do primeiro
casal como instituição necessária para a preservação do gênero humano. Se a
mulher foi tirada do homem, são, portanto, homem e mulher que se unem em
matrimônio, uma só carne e, “O que Deus
uniu o homem não separe”.
No Antigo Testamento o casamento, muitas vezes, era
uma imposição dos pais para os filhos, sendo que os jovens se casavam sem mesmo
se conhecerem, como aconteceu com Isaac, conforme determinou Abraão;
·
“... ao servo mais velho de sua casa, que governava
todos os seus bens: ... ‘Mas irás à minha terra, à minha parentela, e
escolherás uma mulher para meu filho Isaac.” (Gn, 24,2ss.).
Mas, também, havia casamento por amor, como aconteceu
com Rute e Booz:
·
“Assim Booz desposou Rute, que se tornou sua esposa.
Uniu-se a ela, e Yahweh deu a Rute a graça de conceber e ela deu à luz um filho”. (Rt 4, 13).
No Antigo Testamento e, pela Lei de Moisés, o
casamento não era uma instituição indissolúvel. No Novo Testamento, como não
poderia deixar de ser, os escribas e fariseus, preocupados com os ensinamentos
e a doutrina de Jesus Cristo sobre o amor verdadeiro, não com o intuito de
aprender mais, pois julgavam que já sabiam tudo e eram os donos da verdade, mas
para tentar fazer Jesus entrar em contradição sobre o que ensinava.
O repúdio ou divórcio significava que o homem podia dispensar
sua mulher por qualquer motivo, sem mais explicações. Expressava a
superioridade do homem e seu domínio sobre a mulher e refletia, na esfera
doméstica, a opressão exercida sobre a mulher em todos os níveis da sociedade
judaica.
Quando os fariseus citam Moisés para justificar sua
atitude ignóbil, Jesus não se intimida: declara-lhes abertamente que, Moisés,
ao dar esse preceito para agradar aos homens e cedendo à obstinação e dureza de
coração do povo, Moisés foi infiel a Deus e frustrou o designo divino.
Contra toda a mentalidade e modo de ser da cultura
judaica, Jesus afirma claramente a igualdade entre homem e mulher.
Não valem leis humanas que destruam essa igualdade
querida por Deus.
Os discípulos de Jesus que presenciaram a discussão de
Jesus com os fariseus e que tinham a mesma mentalidade dos fariseus, quando
chegaram em casa interrogaram Jesus a respeito, como vemos em Marcos:
·
“E, em casa os discípulos voltaram a interrogá-lo
sobre esse ponto. E ele disse: “Todo aquele que repudiar a sua mulher e
desposar outra, comete adultério contra a primeira; e se essa repudiar o seu
marido e desposar outro, comete adultério.” (Mc 10, 10-12).
No Evangelho de Mateus, os discípulos retrucam:
·
“Os discípulos disseram-lhe: “Se é assim a condição do
homem em relação à mulher, não vale a pena casar-se.” Ele acrescentou: “Nem
todos são capazes de compreender essa palavra, mas só aqueles a quem foi
concedido.” (Mt 19,10-11).
No Evangelho de Lucas Jesus insiste na
indissolubilidade do matrimônio, dizendo:
·
“Todo aquele que repudiar sua mulher e desposar outra
comete adultério, e quem desposar uma repudiada por seu marido comete
adultério.” (Lc 18,18).
Paulo, imbuído de amor pelos ensinamentos de Jesus, ensina:
·
“Quanto àqueles que estão casados, ordeno não eu, mas
o Senhor: a mulher não se separe do marido; se, porém, se separar não se case
de novo ou reconcilie-se com o marido, e o marido não repudie a sua esposa!” (1Cor 7,10-11).
Jesus não somente defendeu e pregou sobre a união, a
indissolubilidade e a felicidade no casamento como também, para divinizá-lo e
torná-lo um sacramento, participou de um casamento (cf Jo 2,1-12), e com
certeza, com as amizades que tinha desde a infância, participou de mais de um
casamento; mas as Sagradas Escrituras só notificam um, talvez, pelas maravilhas
ali realizadas.
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