domingo, 10 de julho de 2016

O BOM SAMARITANO

XV DOMINGO DO TEMPO COMUM

“E QUEM É O MEU PRÓXIMO?” (Lc 10,27).


Diácono Milton Restivo









No Evangelho de Lucas, um doutor da lei quis testar Jesus, conforme diz o próprio Lucas:
“um mestre da lei se levantou e, querendo pôr Jesus em dificuldade, perguntou...” (Lc 10,25). Em Lucas o mestre da lei pergunta a Jesus, como se, ele, sendo mestre da lei, não soubesse: “Mestre,o que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” (Lc 10,25).
Jesus responde a pergunta do mestre da lei com outra pergunta: “O que está escrito na Lei? Como você lê?” (Lc 10,26). Jesus, sabiamente, força o doutor da Lei a declarar aquilo que ele sabia da Lei que ele mesmo transmitia ao povo, e perguntou “como você lê?” porque sabia que os únicos que sabiam ler e escrever no meio do povo eram os escribas, os chamados doutores da Lei, que liam a Lei e a interpretavam do seu jeito para o povo, tirando disso proveito próprio (será que isso só acontecia naquele tempo?). A função do doutor da Lei era estudar e interpretar a Lei de Moisés e transmitir ao povo, com as suas próprias palavras aquilo que o povo não tinha acesso aos livros (rolos) da Lei mosaica.
E o doutor da Lei repetiu o “Shemá Israel”, completando com o mandamento do amor ao próximo: “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o seu coração, com toda a sua alma, com toda a sua força e com toda a sua mente; e ao seu próximo como a si mesmo”. (Lc 10,27). 
         O mestre da lei mostrou que sabia de cor e salteado (como tantos cristãos no dia de hoje) o que as palavras frias retratavam no papiro sem vida, mas que não as colocava em prática, e Jesus sabia disso quando respondeu: “Você respondeu certo. Faça isso, e viverá”. (Lc 10,28).
Realmente, o doutor da lei não transportava para a sua vida aquilo que lia na lei e transmitia para o povo, porque ele nem sabia quem seria o seu próximo e, bem por isso, surpreendentemente, pergunta a Jesus: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10,29).
Por que o especialista da lei fez essa pergunta?  Porque se julgava altamente importante e ninguém do povo poderia competir com ele em sabedoria e conhecimentos da lei e, por isso, ninguém poderia ser o seu próximo, ninguém tinha condições de competir com a sua sabedoria e, possivelmente, com os seus bens materiais. Seria diferente, nos dias de hoje, daqueles que se julgam ser mais filhos de Deus do que os demais, e se julgam mais sábios, mais amados de Deus?
O doutor da lei não tinha dúvida da existência de Deus e de que deveria repetir todos os dias a oração do “Shemá Israel”, declarando o seu amor e adoração a Yahweh, mas, isso de amar o próximo estava fora de cogitação porque ninguém tinha cacife para ser seu próximo e, possivelmente, com sua pergunta, ele gostaria que Jesus dissesse que existisse alguém como ele porque, afinal de contas, ele era de uma categoria superior à do “povinho” (será que ainda hoje acontece isso?). Ai Jesus não teve jeito senão contar uma parábola, a do bom samaritano que, repito, só consta do Evangelho segundo Lucas. Sempre que lemos uma parte do Evangelho em que Jesus procura transmitir vida através dos seus ensinamentos, precisamos estudar os personagens do texto e buscar ver com qual deles nos identificamos.
Jesus fala de um viajante, possivelmente mercador judeu que “descia” de Jerusalém para Jericó. Por que “descia”?  Porque Jerusalém ficava no alto e, para ir a Jericó havia a necessidade de descer por estradas tortuosas e, às vezes, íngremes. Possivelmente um mercador que morava em Jericó, mas que tinha ido em época de festa até Jerusalém para vender do seu produto, como fazem os nossos ambulantes de hoje em dia, e estava voltando com a bolsa recheada de dinheiro, razão pela qual foi surpreendido por bandidos oportunistas. O caminho que ele trilhava era propício para que os ladrões pudessem estar bem seguros de alcançar êxito na sua empreitada maléfica. Jesus não disse que os salteadores da história roubaram o homem: isso está subentendido. Ele concentrou-se no tratamento violento dispensado ao viajante. Os ladrões deixaram a vítima quase morta. Os ladrões não mudaram a sua tática até os nossos dias...
Depois Jesus referencia um sacerdote que, também, possivelmente, morava em Jericó e que tinha ido a Jerusalém para cumprir o seu turno de trabalho no templo de Jerusalém (afinal de contas deveria ser um trabalho rentável, os chamados profissionais do altar, que existem tantos ainda hoje) e agora voltava para casa, da mesma forma que o levita, ambos servidores do Templo, respeitando-se a proporção de cada função. Por fim fala de um samaritano “que estava viajando”.
Nesta parábola Jesus não usa símbolos ou analogias; usa, apenas, fatos da vida real e passível de acontecer a qualquer momento e em qualquer lugar. É uma parábola tão simples que até uma criança pode captar, com sabedoria, o ensinamento de Jesus e a mensagem que ele quer passar.
O quadro é tão simples e ilustra o agir do amor ao próximo em contraste com o egoísmo.
Ladrões roubaram e espancaram, violentamente, um mercador judeu, (puxa vida, isso ainda não acabou), arremessaram-no num buraco às margens da estrada e o deixaram sem forças para que morresse naquele local longe de qualquer socorro ou recurso.
Na sequência da parábola Jesus usa o termo “casualmente” ou “por acaso”. Isso quer dizer que Deus, na sua infinita misericórdia, sempre promove encontro de pessoas que podem ajudar com pessoas que necessitam ser ajudadas e que para Deus não existe o acaso.
Primeiro passa o sacerdote que era um servo da Lei, obrigado a agir com misericórdia até com um animal, conforme vemos no livro do Êxodo: “Se você encontrar, extraviado, o boi ou jumento do seu adversário, leve-os ao dono. Se você encontrar o jumento do seu adversário caído debaixo da carga, não se desvie, mas ajude a erguê-lo”. (Ex 23,4-5). Se essas normas eram para um judeu do povo, quanto mais não seria para um sacerdote, servidor do Templo e ministro de Yahweh.
O sacerdote era um ministro da Lei, investido de autoridade. A função essencial de seu cargo era a de mediador entre Deus e os homens. As obrigações em geral eram ministrar no santuário, diante do Senhor, ensinar o povo a guardar a Lei de Deus e tomar conhecimento da Lei divina. Eram, portanto, pessoas especiais e com cargos também especiais.
O sacerdote era um homem consagrado a Deus e estava à caminho da cidade de Jericó onde, possivelmente, residia e onde, na época, moravam cerca de doze mil sacerdotes por ser perto da cidade de Jerusalém, distante cerca de vinte e quatro quilômetros, após cumprir o seu turno de serviço no Templo de Jerusalém. Com certeza esse sacerdote estava mais preocupado com outros afazeres e não tinha tempo e nem compaixão para socorrer o seu irmão desafortunado.
Por ser sacerdote, com certeza, conhecia  a Lei com o mandamento de amar e socorrer o próximo em suas necessidades: amar a Deus sobre todas as coisas  ao próximo como a si mesmo, mas esse sacerdote passa adiante, sem se sensibilizar com o infeliz pedindo socorro.
O sacerdote ficou diante de um dilema ético: o único meio de saber se realmente o homem ainda estava vivo e precisando de ajuda, era se aproximar do desafortunado e tocá-lo; mas, se já estivesse morto e ele tocasse no falecido, ficaria ritualmente imundo. Não apenas deixou de ajudar, como também foi para o outro lado da estrada.
Afinal das contas aquele infeliz não era um próximo seu, porque não era um sacerdote... Ao passar o sacerdote sem dar a mínima atenção, o desespero voltou para o infeliz jogado na entrância da estrada por se sentir novamente desamparado e sem socorro.
Logo a seguir o infeliz mercador sente aproximar-se mais um transeunte; desta feita era um levita, um homem da tribo de Levi, que era da mesma tribo do sacerdote e tinha por missão cuidar e ajudar nas necessidades do Templo de Jerusalém. Os levitas tomavam conta do Templo.
O cuidado do Templo era um cargo muito honroso e, para isso, foram escolhidos os levitas para o serviço que se relacionava com o Templo pelo motivo de que, quando o povo quebrou o pacto com Deus no deserto e fabricou e adorou o bezerro de ouro, somente os levitas permaneceram fieis na sua aliança com Deus (cf Ex 32,25-29). Os levitas distinguiam-se nas grandes solenidades vestindo-se com túnicas de linho e formavam um grupo privilegiado pela sociedade judaica. Eram responsáveis pela liturgia no templo e por manter a ordem no culto. Era o que chamaríamos hoje de “os donos da igreja”.
Pode-se presumir que os mesmos motivos do sacerdote, para não ajudar o mercador ferido, estavam, também, na mente do levita.
O levita um servidor do Templo e, como ministro de adoração e intérprete da Lei, deveria auxiliar aquele infeliz que estava jogado à beira da estrada, mas, como o sacerdote, passou indiferente e deixou o pobre homem sem assistência e prosseguiu o seu caminho.
Tanto o sacerdote como o levita eram dois líderes religiosos, que conheciam a Lei e, no entanto, demonstraram, com a sua atitude, que viviam uma religão falsa, formal e sem coração, destituída de qualquer compaixão.
A seguir, passa pelo mesmo local um samaritano. As relações dos samaritanos com os judeus foram, em geral, negativas durante toda a antiguidade. Existia entre eles um ódio recíproco.
Os samaritanos eram desprezados pelos judeus pelo fato de não ser uma raça pura e sim misturada com povos pagãos. Quando o infeliz mercador assaltado sente a presença do samaritano, ai é que o desespero deve ter-lhe assaltado o coração, porque os samaritanos eram inimigos dos judeus e, se dois judeus, que eram seus irmãos de sangue, raça e religião haviam passado ao largo sem o socorrer, o que se dirá do samaritano, inimigo seu e do seu povo?
O samaritano era uma mistura de judeu e povos estrangeiros, e os judeus não toleravam essa mistura e por isso os samaritanos eram odiados pelos que tinham sangue puro judaico e, embora o território dos samaritanos fosse limítrofe da Judéia, os judeus não os consideravam “próximos”. E de quem menos se espera é de quem se recebe ajuda, socorro.
E Jesus enaltece a atitude caritativa do samaritano que, ao contrário do sacerdote e do levita, teve compaixão e “Aproximou-se dele fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem no seu próprio animal, e o levou a uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte pegou duas moedas de prata, e as entregou ao dono da pensão, recomendando: ‘Tome conta dele. Quando eu voltar, vou pagar o que ele tiver gasto a mais.” (Lc 10,34-35).
 O Samaritano não perguntou nada, não investigou, não suspeitou, apenas ajudou. Não lhe interessou saber se o pobre judeu violentado nos seus direitos possuía condições de lhe retribuir o bem que lhe estava fazendo ou se tinha esta ou aquela posição social, esta ou aquela religião, se era rico ou pobre. Somente viu nele um irmão necessitado de auxilio e, imediatamente, o ajudou, o socorreu. O samaritano foi misericordioso. Não julgou mal. Foi paciente, foi benigno. Não se conduziu inconvenientemente, não procurou interesses pessoais, não se exasperou, não se sentiu superior, entristeceu-se com a injustiça. Como diz o Apóstolo Paulo: “O amor é prestativo. [...] Não se alegra com a injustiça.” (1Cor 12,4.6). O samaritano não falava a língua dos anjos, não profetizou, não demonstrou conhecer ciências e filosofias e, entretanto, foi realmente o anjo do próximo, como disse Jesus. O maior dom é o amor. O samaritano possuía esse dom.
Ao terminar a parábola, Jesus faz uma nova pergunta ao doutor da Lei: “Na sua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”. (Lc 10,36).
Não havia como não responder. Apesar disso, o doutor da lei ainda conseguiu dar uma resposta evasiva, evitando pronunciar palavra “samaritano”: “Aquele que usou de misericórdia para com ele.” (Lc 10,37). E Jesus remata da mesma maneira que tinha feito antes: “Então vai e faz o mesmo!” (Lc 10,37).
Em qualquer situação que nos encontrarmos, como necessitados ou como colaboradores somos convocados pelo Senhor a amar o nosso próximo como a nós mesmos. Às vezes nós ajudamos às pessoas e as socorremos por obrigação ou a contra gosto, porém a própria Palavra do Evangelho nos esclarece: o próximo “é aquele que usou de misericórdia para com ele” (Lc 10,37).
A misericórdia, então, é o sinal para que nós sejamos “o próximo” de alguém.
Agir com misericórdia é fazê-lo por amor a Deus e acolher a miséria do outro com o mesmo amor de Deus e não somente com o nosso amor imperfeito e interesseiro.
O samaritano provou ser verdadeiramente um próximo, porque esse sentimento revela-se através da misericórdia. O amor precisa ser praticado, não admirado.
Fica no ar a pergunta: “Entendemos a profundidade e a magnitude desse mandamento?” Se conversássemos com Jesus a respeito disso, ele também nos diria: “Você não está longe do reino de Deus?” Quem poderá nos responder isso com exatidão é o nosso modo de vida; nós podemos nos enganar, ele não...  “... Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu entendimento.” (Lc 12,27). “... Amarás o teu próximo como a ti mesmo... Não existe outro mandamento maior que esses.” (Mc 12,31). “Caríssimos, se Deus assim nos amou, devemos nós também amar-nos uns aos outros. Ninguém jamais contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e seu amor em nós é levado à perfeição.” (1Jo 4,11-12).
E João, o Apóstolo do Amor, insiste no amor que devemos ter a Deus, e, através desse amor, amar o irmão: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, pois o amor é Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é amor.” (1Jo 4,7-8).

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