XV DOMINGO DO TEMPO COMUM
“E QUEM É O MEU PRÓXIMO?” (Lc 10,27).
Diácono Milton Restivo
No Evangelho de Lucas, um doutor da lei quis testar Jesus, conforme diz o próprio Lucas: “um mestre da lei se levantou e, querendo pôr Jesus em dificuldade, perguntou...” (Lc 10,25). Em Lucas o mestre da lei pergunta a Jesus, como se, ele, sendo mestre da lei, não soubesse: “Mestre,o que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” (Lc 10,25).
Jesus responde a pergunta do mestre da lei com outra pergunta: “O que está escrito na Lei? Como você lê?” (Lc
10,26). Jesus, sabiamente, força o doutor da Lei a declarar aquilo que ele
sabia da Lei que ele mesmo transmitia ao povo, e perguntou “como você lê?” porque sabia que os únicos que sabiam ler e
escrever no meio do povo eram os escribas, os chamados doutores da Lei, que
liam a Lei e a interpretavam do seu jeito para o povo, tirando disso proveito
próprio (será que isso só acontecia naquele tempo?). A função do doutor da Lei
era estudar e interpretar a Lei de Moisés e transmitir ao povo, com as suas
próprias palavras aquilo que o povo não tinha acesso aos livros (rolos) da Lei
mosaica.
E o doutor da Lei repetiu o “Shemá
Israel”, completando com o mandamento do amor ao próximo: “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o seu
coração, com toda a sua alma, com toda a sua força e com toda a sua mente; e ao
seu próximo como a si mesmo”. (Lc 10,27).
O mestre da lei mostrou que sabia de cor e salteado (como tantos cristãos
no dia de hoje) o que as palavras frias retratavam no papiro sem vida, mas que
não as colocava em prática, e Jesus sabia disso quando respondeu: “Você respondeu certo. Faça isso, e viverá”.
(Lc 10,28).
Realmente, o doutor da lei não transportava para a sua vida aquilo que lia
na lei e transmitia para o povo, porque ele nem sabia quem seria o seu próximo
e, bem por isso, surpreendentemente, pergunta a Jesus: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10,29).
Por que o especialista da lei fez essa pergunta? Porque se julgava altamente importante e
ninguém do povo poderia competir com ele em sabedoria e conhecimentos da lei e,
por isso, ninguém poderia ser o seu próximo, ninguém tinha condições de
competir com a sua sabedoria e, possivelmente, com os seus bens materiais. Seria
diferente, nos dias de hoje, daqueles que se julgam ser mais filhos de Deus do
que os demais, e se julgam mais sábios, mais amados de Deus?
O doutor da lei não tinha dúvida da existência de Deus e de que deveria repetir
todos os dias a oração do “Shemá Israel”,
declarando o seu amor e adoração a Yahweh, mas, isso de amar o próximo estava
fora de cogitação porque ninguém tinha cacife para ser seu próximo e,
possivelmente, com sua pergunta, ele gostaria que Jesus dissesse que existisse
alguém como ele porque, afinal de contas, ele era de uma categoria superior à
do “povinho” (será que ainda hoje acontece isso?). Ai Jesus não teve jeito
senão contar uma parábola, a do bom samaritano que, repito, só consta do
Evangelho segundo Lucas. Sempre que lemos uma parte do Evangelho em que Jesus procura
transmitir vida através dos seus ensinamentos, precisamos estudar os
personagens do texto e buscar ver com qual deles nos identificamos.
Jesus fala de um viajante, possivelmente mercador judeu que “descia” de Jerusalém para Jericó. Por
que “descia”? Porque Jerusalém ficava no alto e, para ir a
Jericó havia a necessidade de descer por estradas tortuosas e, às vezes,
íngremes. Possivelmente um mercador que morava em Jericó, mas que tinha ido em
época de festa até Jerusalém para vender do seu produto, como fazem os nossos
ambulantes de hoje em dia, e estava voltando com a bolsa recheada de dinheiro,
razão pela qual foi surpreendido por bandidos oportunistas. O caminho que ele trilhava era propício para
que os ladrões pudessem estar bem seguros de alcançar êxito na sua empreitada
maléfica. Jesus não disse que os salteadores da história roubaram o homem: isso
está subentendido. Ele concentrou-se no tratamento violento dispensado ao viajante.
Os ladrões deixaram a vítima quase morta. Os ladrões não mudaram a sua tática
até os nossos dias...
Depois Jesus referencia um sacerdote que, também, possivelmente, morava em
Jericó e que tinha ido a Jerusalém para cumprir o seu turno de trabalho no templo
de Jerusalém (afinal de contas deveria ser um trabalho rentável, os chamados
profissionais do altar, que existem tantos ainda hoje) e agora voltava para
casa, da mesma forma que o levita, ambos servidores do Templo, respeitando-se a
proporção de cada função. Por fim fala de um samaritano “que estava viajando”.
Nesta parábola Jesus não usa símbolos ou analogias; usa, apenas, fatos da
vida real e passível de acontecer a qualquer momento e em qualquer lugar. É uma
parábola tão simples que até uma criança pode captar, com sabedoria, o
ensinamento de Jesus e a mensagem que ele quer passar.
O quadro é tão simples e ilustra o agir do amor ao próximo em contraste com
o egoísmo.
Ladrões roubaram e espancaram, violentamente, um mercador judeu, (puxa
vida, isso ainda não acabou), arremessaram-no num buraco às margens da estrada e
o deixaram sem forças para que morresse naquele local longe de qualquer socorro
ou recurso.
Na sequência da parábola Jesus usa o termo “casualmente” ou “por acaso”.
Isso quer dizer que Deus, na sua infinita misericórdia, sempre promove
encontro de pessoas que podem ajudar com pessoas que necessitam ser ajudadas e
que para Deus não existe o acaso.
Primeiro passa o sacerdote que era um servo da Lei, obrigado a agir com
misericórdia até com um animal, conforme vemos no livro do Êxodo: “Se você encontrar, extraviado, o boi ou
jumento do seu adversário, leve-os ao dono. Se você encontrar o jumento do seu
adversário caído debaixo da carga, não se desvie, mas ajude a erguê-lo”. (Ex
23,4-5). Se essas normas eram para um judeu do povo, quanto mais não seria para
um sacerdote, servidor do Templo e ministro de Yahweh.
O sacerdote era um ministro da
Lei, investido de autoridade. A função essencial de seu cargo era a de mediador
entre Deus e os homens. As obrigações em geral eram ministrar no santuário,
diante do Senhor, ensinar o povo a guardar a Lei de Deus e tomar conhecimento
da Lei divina. Eram, portanto, pessoas especiais e com cargos também especiais.
O sacerdote era um homem consagrado a Deus e estava à caminho da cidade de
Jericó onde, possivelmente, residia e onde, na época, moravam cerca de doze mil
sacerdotes por ser perto da cidade de Jerusalém, distante cerca de vinte e
quatro quilômetros, após cumprir o seu turno de serviço no Templo de Jerusalém.
Com certeza esse sacerdote estava mais preocupado com outros afazeres e não
tinha tempo e nem compaixão para socorrer o seu irmão desafortunado.
Por ser sacerdote, com certeza, conhecia
a Lei com o mandamento de amar e socorrer o próximo em suas
necessidades: amar a Deus sobre todas as coisas
ao próximo como a si mesmo, mas esse sacerdote passa adiante, sem se
sensibilizar com o infeliz pedindo socorro.
O sacerdote ficou diante de
um dilema ético: o único meio de saber se realmente o homem ainda estava vivo e
precisando de ajuda, era se aproximar do desafortunado e tocá-lo; mas, se já
estivesse morto e ele tocasse no falecido, ficaria ritualmente imundo. Não
apenas deixou de ajudar, como também foi para o outro lado da estrada.
Afinal das contas aquele infeliz não era um próximo seu, porque não era um
sacerdote... Ao passar o sacerdote sem dar a mínima atenção, o desespero voltou
para o infeliz jogado na entrância da estrada por se sentir novamente
desamparado e sem socorro.
Logo a seguir o infeliz mercador sente aproximar-se mais um transeunte;
desta feita era um levita, um homem da tribo de Levi, que era da mesma tribo do
sacerdote e tinha por missão cuidar e ajudar nas necessidades do Templo de
Jerusalém. Os levitas tomavam conta do Templo.
O cuidado do Templo era um cargo
muito honroso e, para isso, foram escolhidos os levitas para o serviço que se
relacionava com o Templo pelo motivo de que, quando o povo quebrou o pacto com
Deus no deserto e fabricou e adorou o bezerro de ouro, somente os levitas
permaneceram fieis na sua aliança com Deus (cf Ex 32,25-29). Os levitas
distinguiam-se nas grandes solenidades vestindo-se com túnicas de linho e formavam um grupo privilegiado pela sociedade
judaica. Eram responsáveis pela liturgia no templo e por manter a ordem no
culto. Era o que chamaríamos hoje de “os donos da igreja”.
Pode-se presumir que os mesmos motivos do sacerdote, para não ajudar o
mercador ferido, estavam, também, na mente do levita.
O levita um servidor do Templo e, como ministro de adoração e intérprete da
Lei, deveria auxiliar aquele infeliz que estava jogado à beira da estrada, mas,
como o sacerdote, passou indiferente e deixou o pobre homem sem assistência e
prosseguiu o seu caminho.
Tanto o sacerdote como o levita eram dois líderes religiosos, que conheciam
a Lei e, no entanto, demonstraram, com a sua atitude, que viviam uma religão
falsa, formal e sem coração, destituída de qualquer compaixão.
A seguir, passa pelo mesmo local um samaritano. As relações dos samaritanos
com os judeus foram, em geral, negativas durante toda a antiguidade. Existia
entre eles um ódio recíproco.
Os samaritanos eram desprezados pelos judeus pelo fato de não ser
uma raça pura e sim misturada com povos pagãos. Quando o infeliz mercador assaltado sente a presença do samaritano, ai é
que o desespero deve ter-lhe assaltado o coração, porque os samaritanos eram
inimigos dos judeus e, se dois judeus, que eram seus irmãos de sangue, raça e
religião haviam passado ao largo sem o socorrer, o que se dirá do samaritano,
inimigo seu e do seu povo?
O samaritano era uma mistura de judeu e povos estrangeiros, e os judeus não
toleravam essa mistura e por isso os samaritanos eram odiados pelos que tinham
sangue puro judaico e, embora o território dos samaritanos fosse limítrofe da
Judéia, os judeus não os consideravam “próximos”. E de quem menos se espera é de
quem se recebe ajuda, socorro.
E Jesus enaltece a atitude caritativa do samaritano que, ao contrário do
sacerdote e do levita, teve compaixão e “Aproximou-se
dele fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem
no seu próprio animal, e o levou a uma pensão, onde cuidou dele. No dia
seguinte pegou duas moedas de prata, e as entregou ao dono da pensão,
recomendando: ‘Tome conta dele. Quando eu voltar, vou pagar o que ele tiver
gasto a mais.” (Lc 10,34-35).
O Samaritano não perguntou nada, não investigou, não suspeitou,
apenas ajudou. Não lhe interessou saber se o pobre judeu violentado nos seus
direitos possuía condições de lhe retribuir o bem que lhe estava fazendo ou se
tinha esta ou aquela posição social, esta ou aquela religião, se era rico ou
pobre. Somente viu nele um irmão necessitado de auxilio e, imediatamente, o
ajudou, o socorreu. O samaritano foi misericordioso. Não julgou mal. Foi
paciente, foi benigno. Não se conduziu inconvenientemente, não procurou
interesses pessoais, não se exasperou, não se sentiu superior, entristeceu-se
com a injustiça. Como diz o Apóstolo Paulo: “O
amor é prestativo. [...] Não se
alegra com a injustiça.” (1Cor 12,4.6). O samaritano não falava a língua
dos anjos, não profetizou, não demonstrou conhecer ciências e filosofias e,
entretanto, foi realmente o anjo do próximo, como disse Jesus. O maior dom é o
amor. O samaritano possuía esse dom.
Ao terminar a parábola, Jesus faz uma nova pergunta ao doutor da Lei: “Na sua opinião, qual dos três foi o próximo
do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”. (Lc 10,36).
Não havia como não responder. Apesar disso, o doutor da lei ainda
conseguiu dar uma resposta evasiva, evitando pronunciar palavra “samaritano”: “Aquele que usou de misericórdia para com
ele.” (Lc 10,37). E Jesus remata da mesma maneira que tinha feito antes: “Então vai e faz o mesmo!” (Lc 10,37).
Em qualquer situação que nos encontrarmos, como necessitados ou como
colaboradores somos convocados pelo Senhor a amar o nosso próximo como a nós
mesmos. Às vezes nós ajudamos às pessoas e as socorremos por obrigação ou a
contra gosto, porém a própria Palavra do Evangelho nos esclarece: o próximo “é aquele que usou de misericórdia para com
ele” (Lc 10,37).
A misericórdia, então, é o sinal para que nós sejamos “o próximo” de
alguém.
Agir com misericórdia é fazê-lo por amor a Deus e acolher a miséria do
outro com o mesmo amor de Deus e não somente com o nosso amor imperfeito e
interesseiro.
O samaritano provou ser verdadeiramente um próximo, porque esse
sentimento revela-se através da misericórdia. O amor precisa ser praticado, não
admirado.
Fica no ar a pergunta: “Entendemos a profundidade e a magnitude
desse mandamento?” Se conversássemos com Jesus a respeito disso, ele também
nos diria: “Você não está longe do reino
de Deus?” Quem poderá nos responder isso com exatidão é o nosso modo de
vida; nós podemos nos enganar, ele não... “... Amarás
o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua
força e de todo o teu entendimento.” (Lc 12,27). “... Amarás o teu próximo como a ti mesmo... Não existe outro
mandamento maior que esses.” (Mc
12,31). “Caríssimos, se Deus assim nos
amou, devemos nós também amar-nos uns aos outros. Ninguém jamais contemplou a
Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e seu amor em nós é
levado à perfeição.” (1Jo
4,11-12).
E João, o Apóstolo do Amor,
insiste no amor que devemos ter a Deus, e, através desse amor, amar o irmão: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, pois o
amor é Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que
não ama não conheceu a Deus, porque Deus é amor.” (1Jo 4,7-8).
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