sábado, 14 de fevereiro de 2015

“SE QUERES, TENS O PODER DE CURAR-ME.”

“SE QUERES, TENS O PODER DE CURAR-ME.” (Mc 1,40).


Diácono Milton Restivo

A primeira leitura desta liturgia fala de um profeta muito importante, mas totalmente desconhecido pela grande maioria dos cristãos: o profeta Eliseu. O nome “Eliseu” quer dizer “Deus é a salvação”. Eliseu foi discípulo e sucessor do grande profeta Elias.
Nas narrativas da vida de Eliseu, nas Sagradas Escrituras, encontra-se uma série de acontecimentos sobrenaturais que marca a carreira de seu ministério.
Os milagres de Eliseu ocorreram num momento em que a religião de Yahweh estava enfrentando uma afronta da parte do povo que insistia em adorar ao deus pagão Baal, e os reis de Israel se entregaram a essa adoração, chegando a fazer altares e locais de adoração para esses deuses. Da mesma forma que os milagres de Elias, Eliseu foi concebido para demonstrar a autoridade do profeta e de apresentar ao povo o Deus vivo, Yahweh, combatendo os falsos deuses.
Eliseu superou em muito o profeta Elias no número e no caráter extraordinário de seus milagres, mas a personalidade e a influência religiosa de Elias foram que ficaram marcadas na história do povo judeu e, bem por isso, Elias é mencionado trinta vezes no Novo Testamento, enquanto que Eliseu apenas uma vez referenciado, e isso pelo próprio Jesus, quando disse: “Havia também muitos leprosos em Israel, no tempo de Eliseu. Apesar disso nenhum deles foi curado, a não ser o estrangeiro Naamã, que era sírio” (Lc 4,27), passagem de que trata primeira leitura desta liturgia.
       Naamã era um importante general, comandante do exército sírio. Esse homem que comandava exércitos e que tinha fama, prestígio e riquezas, sofria da terrível doença da lepra, ficou sabendo que Eliseu era um homem de Yahweh, e procurou o profeta para curá-lo.
Naamã não era um israelita. Era um estrangeiro, até inimigo dos israelitas, porque os sírios e os israelitas estavam em constante guerra. “Naamã, chefe do exército do rei Aram, era homem estimado e favorecido pelo seu senhor. [...] No entanto, esse homem ficou leproso” (2Rs 5,1). Era general de todos os exércitos de seu país e podia tudo, menos curar-se da sua terrível moléstia: a lepra. E, para tanto, Naamã busca Eliseu para curá-lo. Mas, Eliseu não deu a mínima para ele quando chegou às portas da sua casa e apenas mandou um recado através de um mensageiro: “Vai, lava-te sete vezes no Jordão, e tua carne será curada e ficarás limpo” (2Rs 5,10).
Naamã ficou indignado com o pouco caso de Eliseu porque, afinal de contas, ele era uma pessoa importante do seu país e merecia melhor consideração e “Naamã, irritado, foi-se embora, dizendo: ‘Eu pensava que ele sairia para me receber e que, de pé, invocaria o nome do Senhor, seu Deus, e que tocaria com sua mão o lugar da lepra e me curaria” (2Rs 5,11). Eliseu apenas deixou claro que não estava a serviço de qualquer pessoa importante deste mundo e que o seu ministério era totalmente voltado à vontade de Yahweh, o seu Deus e Senhor. 
Eliseu não estava para fazer graça, fazer média ou usufruir de privilégios que essa pessoa importante lhe pudesse proporcionar, como fazem muitos ministros que dizem estar a serviço de Deus, mas que se submetem aos caprichos de poderosos a troco de satisfações pessoais.
Apesar de sua indignação, Naamã, aconselhado pelos seus servos, fez o que Eliseu mandara: Então ele desceu e mergulhou sete vezes no Jordão, conforme o homem de Deus tinha mandado, e sua carne tornou-se semelhante a de uma criancinha, e ele ficou purificado”. (Rs 5,14).
Na Lei de Moisés uma pessoa leprosa era considerada imunda: Quando um homem tiver na pele da sua carne inchação, ou pústula, ou mancha lustrosa, e esta se tornar na sua pele como praga de lepra, então será levado a Arão o sacerdote, ou a um de seus filhos, os sacerdotes, e o sacerdote examinará a praga na pele da carne. Se o pelo na praga se tiver tornado branco, e a praga parecer mais profunda que a pele, é praga de lepra; o sacerdote, verificando isto, o declarará imundo” (Lv 13,2-3).
O leproso, no Antigo Testamento, na concepção do povo e segundo a lei de Moisés, era alguém que fizera um grande mal, um grande pecado, e teria sido castigado, atingido pela ira de Yahweh e contraído essa tão terrível moléstia.
O primeiro caso que vemos nas Sagradas Escrituras que relaciona a lepra à ira de Yahweh refere-se à Maria, irmã de Moisés e Aarão, que havia murmurado contra Moisés por uma sua atitude que havia sido aprovada por Deus (Nm 12,1-16) e Yahweh, na sua ira, a atingiu com a lepra: "Porque vocês se atreveram a falar contra meu servo Moisés?" A ira de Yahweh se inflamou contra eles, e Yahweh se retirou. A nuvem se afastou da tenda. E Maria tornou-se leprosa, branca como a neve. Aarão voltou-se para ela, e estava leprosa." (Nm 12, 8b-10).
Dentre as maldições contra aquele que não cumprisse os mandamentos de Yahweh estava a lepra e outros males e doenças: “Contudo, se você não obedecer a Yahweh seu Deus, não colocando em prática todos os seus mandamentos e estatutos que hoje eu lhe ordeno, virão sobre vocês todas essas maldições e o atingirão... [...] Yahweh ferirá você com úlceras do Egito, com tumores, crostas e sarnas, que você não poderá curar. Yahweh ferirá você com loucura, cegueira e demência. [...] Yahweh ferirá você com úlcera maligna nos joelhos, nas pernas, da qual você não poderá ficar bom, desde a sola dos pés até o alto da cabeça.” ( Dt, 28, 15.27-28.35).
Para os judeus a doença era considerada consequência do pecado.
Quando a lepra era constatada numa pessoa, homem ou mulher, essa pessoa deveria ser afastada de sua família, de sua aldeia, de sua cidade para não contaminar os demais e viver no deserto, sozinha e ninguém poderia se aproximar dela e muito menos tocá-la para não se contaminar tanto corporalmente como espiritualmente.
Até a casa da pessoa contaminada pela lepra deveria ser purificada e se não fosse, deveria ser destruída: “Se, porém, a praga tornar a brotar na casa, depois de arrancadas as pedras, raspada a casa e de novo rebocada, o sacerdote entrará, e a examinará; se a praga se tiver estendido na casa, lepra roedora há na casa; é imunda. Portanto se derrubará a casa, as suas pedras, e a sua madeira, como também toda a argamassa da casa, e se levará tudo para fora da cidade, a um lugar imundo. Aquele que entrar na casa, enquanto estiver fechada, será imundo até a tarde. Aquele que se deitar na casa lavará as suas vestes; e quem comer na casa lavara as suas vestes. (Lv 14,43-47).
Na lei de Moisés a lepra sempre foi tratada como sinal de impureza ou pecado grave, e a regra era uma só: discriminar os doentes e privá-los do convívio familiar e social. Discriminação é dar tratamento diferente às pessoas que são iguais e que têm, pela constituição ou normas religiosas, os mesmos direitos e deveres que os demais. Discriminação é a não aceitação do outro.
E isso acontecia no Antigo Testamento, na Lei de Moisés, onde o leproso deveria ser expulso da família, da sociedade, do culto religioso, vagar pelas pradarias e desertos e para se identificar como tal, deveria rasgar suas roupas, cabeça descoberta e cabelos em desalinho, e sair pelo mundo, gritando para que ninguém se aproximasse dele: “imundo, imundo”. “Também as vestes do leproso, em quem está a praga, serão rasgadas; ele ficará com a cabeça descoberta e de cabelo solto, mas cobrirá o bigode, e clamará: Imundo, imundo. Por todos os dias em que a praga estiver nele, será imundo; imundo é; habitará só; a sua habitação será fora do arraial. Quando também houver praga de lepra em alguma vestidura, seja em vestidura de lã ou em vestidura de linho, quer na urdidura, quer na trama, seja de linho ou seja de lã; ou em pele, ou em qualquer obra de pele” (Lv 13,45-48).
Os leprosos tinham que andar com roupas rasgadas, cabelos soltos, clamando o tempo todo: “Imundo! Imundo.” Assim todas as pessoas ao seu redor eram avisadas: “Cuidado! Aqui perto se encontra alguém que é leproso. Evite encontrar-se ou aproximar-se dele”.
A discriminação era total, e o homem colocava na boca de Yahweh aquilo que o próprio homem gostaria que acontecesse aos outros, desde que ele não fosse atingido pelo mal que afligia ao outro, muitas vezes ocasionado pelo seu próprio desinteresse, como acontece ainda nos nossos dias, como se Yahweh aconselhasse e determinasse a discriminação entre seus filhos: “Yahweh falou a Moisés: ‘Ordene aos filhos de Israel que expulsem do acampamento os leprosos, os que têm gonorréia e os que se contaminaram com cadáveres. Homens e mulheres serão todos expulsos do acampamento, para que não fique contaminado o acampamento, no meio do qual eu moro. Os filhos de Israel fizeram isso e os expulsaram do acampamento. Os israelitas fizeram conforme Yahweh havia ordenado a Moisés.” (Nm 5,1-4).
Quantos foram expulsos, supostamente por ordem de Yahweh, o Deus da misericórdia, do amor, do perdão e da fraternidade? Dezenas, centenas, milhares? Como devemos interpretar o amor dedicado ao próximo por uma Teresa de Calcutá, Camilo de Lelis, Vicente de Paula, Irmã Dulce e centenas e milhares de irmãos e irmãs cristãos que seguiram o novo mandamento de Jesus, quando disse: “Eu dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, vocês devem se amar uns aos outros. Se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos.” (Jo 13,34-35).
Seguindo o mandamento de Jesus esses santos não expulsaram nenhum leproso de sua presença, muito pelo contrário, os acolheram, confortaram, minimizaram seus sofrimentos e se fizeram um deles.
E o que dizer então de Damião, o Santo de Molokai, uma ilha do arquipélago do Havaí, que dedicou seu apostolado inteirinho no tratamento dos leprosos naquela ilha, culminando em morrer, também ele, vítima dessa doença?
Padre Damião, nascido na Bélgica, cujo nome de Batismo era Jozef de Veuster, foi padre e missionário da Congregação dos Sagrados Corações, é conhecido como o Santo Apóstolo dos leprosos de Molokai. Com sua atividade pastoral, Damião conseguiu regenerar a convivência social na “colônia da morte”, como era conhecida a ilha de Molokai e onde os enfermos brigavam para sobreviver. Padre Damião morreu vitimado pela lepra em 1889. Foi canonizado pelo Papa Bento XVI em 11 de outubro de 2011, recebendo o título de “São Damião de Molokai”.
Como então expulsar do convívio familiar, social e religioso pessoas que têm doenças consideradas incuráveis, como era a lepra no Antigo Testamento e até quase o Século XX da nossa era? Os leprosos não faziam parte da comunidade do povo de Deus porque, no Antigo Testamento, quem tinha uma doença grave era considerado punido por Yahweh por ter cometido algum pecado grave. A lepra era considerada um castigo de Deus, uma medida disciplinar que Deus usava para punir os pecadores.
E nós, hoje em dia, não somos diferentes dos judeus do Antigo Testamento e do tempo de Jesus; naquele tempo eles expulsavam de suas comunidades os doentes corporais.
Hoje nós expulsamos do nosso meio os doentes sociais, os doentes morais, os doentes espirituais. Julgamo-nos por demais puros e honestos e, hipocritamente, temos receio de ter perto de nós irmãos e irmãs que necessitam do nosso apoio moral, material, espiritual, afetivo.
No nosso meio proliferam, a cada dia que passa, os leprosos sociais: os pobres, os desempregados, os marginalizados, os que usam drogas, os alcoólatras, os excepcionais, os encarcerados, as prostitutas, os homossexuais, os favelados,  e em todos eles colocamos um carimbo de desprezo e exigimos que eles permaneçam bem longe de nós para que, na nossa hipocrisia, não nos contagiemos com sua doença...
Jesus veio e tirou o estigma dos leprosos e por todos aqueles que eram considerados pela lei e pela opinião pública, punidos por Yahweh.
O Evangelho da liturgia deste domingo narra que, naquele dia “de madrugada, ainda escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto. Simão e seus companheiros foram atrás de Jesus, e quando o encontraram, disseram: ‘Todos estão te procurando’.” (Mc 1,35-37). Voltando para a comunidade, “um leproso chegou perto de Jesus e pediu de joelhos: ‘Se queres, tu tens o poder de me purificar’.” (Mc 1,40).
Dois fatos importantes chamam a atenção nessa aproximação do leproso a Jesus.
Primeiro: o leproso chega perto de Jesus. Era extremamente proibida pela Lei de Moisés a aproximação de qualquer leproso para qualquer pessoa, correndo o risco da pessoa sadia ficar impura e ter que se afastar também da comunidade por sete dias para se purificar e verificar se não havia sido contaminado.
Segundo: A total confiança e fé do leproso na pessoa de Jesus, vendo em Jesus alguém que tinha condições de curar qualquer tipo de doença, já que, se ele curasse a lepra, que era incurável, qualquer outro tipo de doença seria fichinha para Jesus.
E o evangelista Marcos continua na sua narrativa: “Jesus ficou cheio de ira, estendeu a mão, tocou nele, e disse: ‘Eu quero, fique purificado’. No mesmo instante a lepra desapareceu e o homem ficou purificado.” (Mc 1,42-42).
Mais esclarecimentos vamos encontrar nestes versículos.
Primeiro: Jesus ficou cheio de ira, isto é, a sua natureza divina falou mais alto que a natureza humana. Jesus ficou cheio de ira, de revolta, de indignação, de repúdio por ver como os homens tratavam-se unas aos outros. Por quê? Por ver a discriminação da qual era submetido o leproso: abandonado à sua própria sorte, sem apoio, assistência e socorro por parte da comunidade e dos setores públicos e religiosos e dos seus próprios irmãos de religião.
Segundo: Jesus estendeu a mão e, com certeza, tocou na pele purulenta do leproso, isto é, contrariou frontalmente a lei de Moisés que proibia sequer que alguém se aproximasse de um leproso e muito menos que o tocasse porque, segundo a própria lei, quem assim o fizesse, ficaria impuro e deveria, também, afastar-se da comunidade por sete dias, até confirmar que não havia sido contagiado pela doença.
Terceiro: Jesus fez valer a sua natureza divina, indo de encontro com a fé do leproso e atendendo ao seu pedido, pedido esse que foi uma oração fervorosa e cheia de fé e confiança, de um homem que necessitava da ajuda de Jesus e pede-a seguro de que, se o Senhor quiser, tem poder para livrá-lo do mal de que padece, recebendo com resposta: “Eu quero, fique purificado”, confirmando aquilo que ele mesmo diria mais tarde: “Tudo o que vocês pedirem na oração, acreditem que já o receberam, e assim será” (Mc 11,24) e “Todo aquele que pede, recebe; quem procura acha; e a quem bate, a porta será aberta.” (Mt 7,7-8).
Jesus demonstrou que é maior que Moisés. Não seguiu as leis e rituais da lei mosaica que proibia terminantemente de se aproximar, ainda que de longa distância, de um leproso, e não foi só isso, tocou no leproso.
E foi além: demonstrou que a caridade, o amor, a fraternidade está acima da lei e, para provar isso, mandou que o leproso se apresentasse aos sacerdotes, conforme a lei de Moisés e que oferecesse o sacrifício estabelecido pela purificação, para mostrar aos sacerdotes que o amor supera a lei, conforme escreveu Paulo aos corintios: “Ainda que eu falasse línguas, e dos homens e dos anjos, se eu não tiver amor, seria como um sino ruidoso ou como um címbalo estridente. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência; ainda que eu tivesse toda fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria.” (1Cor, 13,1-2).
Agostinho, Bispo de Hipona, disse: “A necessidade não conhece leis”.
Teresa de Calcutá, certa vez, estava dando banho em um leproso e achegou-se a ela um turista inglês que, enjoado, escandalizado e enojado, disse que não faria aquilo nem por um milhão de dólares, a que Teresa respondeu: “O senhor não daria banho a um leproso nem por um milhão de dólares? Eu também não. Só por amor se pode dar banho a um leproso.”
Teresa de Calcutá não fazia aquilo por um milhão de dólares; ela fazia por amor. E ela vai além, quando afirmou: “A todos os que sofrem e estão sós, dai sempre um sorriso de alegria. Não lhes proporciones apenas os vossos cuidados, mas também o vosso coração”.
Assim nos ensina o Catecismo da Igreja Católica no seu item 1972: “A Lei nova é chamada Lei do amor, porque faz agir mais pelo amor infundido pelo Espírito Santo do que pelo temor: Lei da graça, porque confere a força da graça para agir pela fé e pelos sacramentos; Lei de liberdade porque nos liberta das observâncias rituais e jurídicas da Lei antiga, nos inclina a agir espontaneamente sob o impulso da caridade e, finalmente, nos faz passar da condição do escravo «que ignora o que faz o seu senhor», para a do amigo de Cristo: «porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi do meu Pai» (Jo 15, 15); ou ainda para a condição de filho herdeiro (34)”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário