“MESTRE, É BOM
FICARMOS AQUI”. (Mc 9,5).
Diácono
Milton Restivo
A primeira
leitura deste segundo domingo da Quaresma fala do sacrifício de Abraão. “Deus
pôs Abraão à prova, e lhe disse: ‘Abraão, Abraão’! Ele respondeu: ‘Estou aqui’.
Deus disse: ‘Toma teu filho, o seu único filho Isaac, a quem você ama, vá à
terra de Moriá e ofereça-o aí em holocausto, sobre uma montanha que eu vou lhe
mostrar.” (Gn 22,1-2).
O povo
daquelas terras onde Abraão havia se instalado depois de deixar a casa de seu
pai, costumava sacrificar aos seus deuses o que havia de melhor em sua vida
como a primeira colheita dos frutos dos seus pomares, os primeiros grãos da sua
seara, os primeiros filhotes de suas ovelhas ou de outros animais, chegando ao
cúmulo de, muitas vezes, sacrificar os seus próprios filhos primogênitos.
É a primeira
vez que um sacrifício humano é citado nas Sagradas Escrituras.
Deus quis
provar a fé de Abraão, mas ele deu a Abraão três dias de caminhada para que Abraão
pensasse sobre que atitude deveria tomar. O monte Moriá distava oitenta
quilômetros de Bersabéia, três dias de caminhada de onde Abraão e sua família
estavam acampados.
Bersabéia era
o centro da vida patriarcal. Bersabéia significa “poço de sete ou poço do
juramento” e se originou com um pacto entre Abraão e Abimeleque, rei de Gerar
(cf Gn 21,22-34).
Abraão
caminhou pelo deserto durante três dias até o monte Moriá com o seu filho Isaac
e continuou fiel à vontade de Deus. Muito tempo depois o rei Salomão edificaria
neste mesmo monte Moriá, depois monte Sião, o Templo de Jerusalém, chamado
também Templo de Salomão, (cf 2Cr 3,1) e perto do monte chamado Gólgota - Calvário - (cf Jo 19,17) onde, séculos mais
tarde Jesus seria crucificado.
No terceiro
dia de caminhada Abraão viu o lugar de longe, e “Abraão tomou a lenha do
holocausto e a colocou nas costas de seu filho Isaac, tendo ele próprio tomado
nas mãos o fogo e a faca.” (Gn 22,6).
Isaac levando
a lenha do holocausto nas costas é o primeiro símbolo nas Sagradas Escrituras
do sacrifício de Jesus: Isaac levou a lenha do seu holocausto nas costas e
subiu o monte Moriá; Jesus levou o lenho do seu sacrifício nas costas e subiu o
monte Calvário. Abraão levou o fogo, que simboliza o julgamento, e a faca,
figura de castigo e sacrifício. A obediência de Isaac em levar a lenha de seu
próprio holocausto, sem contestar a ordem de seu pai Abraão, é o prenúncio da
obediência de Jesus à vontade do Pai: “não se faça a minha vontade, e,
sim, a Tua” (Lc 22,42).
Abraão
prosseguiu, sem contestar, a ordem de Yahweh: “Quando chegaram no lugar que
Deus lhe indicara, Abraão construiu o altar, colocou a lenha, depois amarrou
seu filho e o colocou sobre o altar, em cima da lenha. Abraão estendeu a mão e
pegou a faca para imolar seu filho” (Gn 22,9-11). Mas Deus impede que
Abraão imolasse seu próprio e único filho porque isso contrariaria o que Yahweh
havia dito tempos atrás para Noé e seus filhos: “Vou pedir contas do sangue
que é a vida de vocês; vou pedir contas a qualquer animal; e ao homem vou pedir
contas da vida do seu irmão. Quem derrama o sangue do homem, terá o seu próprio
sangue derramado por outro homem. Porque o homem foi feito à imagem de Deus” (Gn
9,5-6).
Yahweh elogia
a fé e obediência de Abraão: “Agora sei que você teme a Deus, pois não me
recusou seu único filho” (Gn 12b). Mas, em contrapartida, o Pai não poupou
a vida de seu próprio e único Filho, entregando-o por todos os homens, como
fala Paulo na segunda leitura desta liturgia: “Ele não poupou seu próprio
Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32).
Yahweh oferece
a Abraão um cordeiro que foi sacrificado no lugar de Isaac.
O cordeiro
oferecido por Yahweh para poupar a vida de Isaac é o símbolo do “Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 12,9), que é o próprio Jesus, o
Cordeiro com o qual Deus Pai nos substitui para morrer por cada um de nós e por
todos nós pelos nossos pecados.
Paulo, imbuído
deste grande amor que o Pai tem pelos homens e convicto de que o Pai não
abandona os que a ele obedece, diz num belo hino de amor de Deus: “O que nos
resta dizer: Se Deus está a nosso favor, quem estará contra nós? Ele não poupou
seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não nos dará também todas
as coisas junto com o seu Filho?”. (Rm 8,31-32).
E Paulo
continua falando do amor de Deus aos coríntios: “Se alguém está em Cristo é
nova criatura. As coisas antigas passaram; eis que uma realidade nova apareceu.
Tudo vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo, e nos confiou
o ministério da reconciliação. Pois era Deus quem reconciliava com ele mesmo o
mundo por meio de Cristo, não levando em conta os pecados dos homens e
colocando em nós a palavra da reconciliação. [...] Aquele que não tinha
nada a ver com o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que por
meio dele sejamos reabilitados com Deus.” (2Cor 5,17-19.21).
A leitura do
Evangelho transmite-nos a transfiguração de Jesus.
A
transfiguração de Jesus é uma passagem que se encontra em todos os Evangelhos
sinóticos: Lucas 9,28-36, Mateus 17,1-9 e Marcos 9,2-10, mas cada um dos
evangelistas sinóticos trabalhou ao seu modo a narrativa dentro dos objetivos que
lhes eram peculiares e da maneira que acharam melhor para o entendimento de
suas comunidades específicas.
A transfiguração
de Jesus é o ponto culminante da sua vida pública, assim como o seu batismo é o
seu ponto de partida, e sua ascensão aos céus é o seu termo.
Pedro
refere-se a esse glorioso evento na sua segunda carta: “De fato, não tiramos de fábulas complicadas o que lhes ensinamos sobre
o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pelo contrário, falamos porque
somos testemunhas oculares da majestade dele. Pois ele recebeu de Deus Pai a
honra e a glória, quando uma voz vinda de sua Glória, lhe disse: ‘Este é o meu
Filho amado: nele encontro o meu agrado’.” (2Pd 1,16-18).
João também,
no seu Evangelho, não deixa passar despercebida a contemplação da glória de
Jesus que foi testemunhada por ele: “E
nós contemplamos a sua glória; glória do Filho único do Pai, cheio de amor e
fidelidade.” (Jo 1,4b). Então, podemos dizer que duas das três testemunhas
oculares privilegiadas fazem alusão nos seus escritos à transfiguração de
Jesus.
Quando falamos
da Transfiguração de Jesus logo a associamos ao monte Tabor, mas, por incrível
que possa parecer, nenhum dos evangelistas que narra esse episódio cita o fato
como acontecido nesse monte. Os evangelistas são unânimes em afirmar que Jesus
subiu numa “alta montanha” (Mc 9,2;
Mt 17,1), ou apenas “à montanha” (Lc
9,28) sem citar o nome da montanha. Pela narrativa dos Evangelhos não sabemos
que montanha foi essa.
A tradição deu
o nome a essa montanha, identificando-a como sendo o monte Tabor, e isso
somente a partir do século IV. Isso foi dito pela primeira vez por Cirilo de
Jerusalém e por Jerônimo em suas obras literárias. O monte Tabor não é citado nenhuma vez no Novo
Testamento, mas são encontrados, pelo menos, doze registros do monte Tabor no
Antigo Testamento, a saber: Josué 19,12; 19,22; 19,34; Juízes 4,6; 4,12; 4,14; 8,18;
1 Samuel 10,3; 1 Crônicas 6,62; Salmo 89 (88),13; Jeremias 46,18 e Oséias 5,1.
Nesta narrativa entramos
na segunda parte do Evangelho segundo Marcos e Jesus começa, lentamente,
revelar-se. “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e seu irmão
João, e os levou sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta montanha”. (Mc
9,2).
Por que “seis dias
depois”? Seis dias depois do diálogo entre Jesus e Pedro, por ocasião em que Pedro fizera sua
profissão de fé, quando Jesus havia perguntado: “E vocês, quem dizem que eu
sou?” tendo respondido Pedro: “Tu és o Messias” (cf Mc 8,27-30). A
partir daí Jesus começa uma catequese aos apóstolos, fazendo três anúncios de
sua paixão (cf Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34), sendo que todos esses anúncios
foram repelidos e contestados pelos apóstolos. A particularidade é que todos
esses anúncios da paixão, apesar de falar de dor e abandono, remetem à
ressurreição.
“Jesus tomou consigo
Pedro, Tiago e seu irmão João...” (Mc 9,2).
Em várias outras ocasiões,
quando Jesus busca refúgio e quer companhia ou testemunhas, chama esses três
apóstolos. Foram esses três, dos quatro primeiros apóstolos chamados por Jesus
para seguí-lo (cf Mc 1,16-20).
Foram, também, escolhidos
para acompanhar Jesus quando da ressurreição da filha de Jairo (cf Mc 5,37).
Também quando Jesus falava do fim dos tempos foram esses três apóstolos e mais
André que se aproximaram, em particular, até Jesus para perguntar quando isso
aconteceria (Cf Mc 13,3-4). Quando estava próximo de sua entrega total nas mãos
do Pai para levar a cabo sua missão, foram esses três apóstolos que Jesus
escolheu para acompanhá-lo até o monte Getsêmani (cf Mc 14,33). Para esses
acontecimentos Jesus buscou testemunhas, e elas foram, exatamente, Pedro, Tiago
e seu irmão João.
Jesus, com Pedro, Tiago e
João, sobe a uma alta montanha. A montanha ou lugar elevado, para os judeus,
era o lugar adequado para se comunicar com Deus, pois entendiam que ali estavam
mais próximo de Deus. Era o lugar ideal para a oração e recolhimento. Moisés,
no Antigo Testamento, para se comunicar com Deus e receber as tábuas da Lei,
subiu a uma montanha (cf Ex 19,16-20). Subindo a montanha com três dos seus
apóstolos, Jesus ocupa o lugar de Moisés.
Jesus “transfigurou-se
diante deles” (Mc 9,2).
Transfigurar-se é aparecer
em outra forma que não seja a sua própria. Na Bíblia esta é a única vez que é
usado o termo “transfiguração”. Para Moisés, foi usado o termo “resplandecente”
para o seu rosto quando desceu da montanha com as tábuas da Lei: “Quando
Moisés desceu da montanha do Sinai, levou nas mãos as duas tábuas da aliança.
Ele não sabia que seu rosto estava resplandecente, por ter falado com Yahweh.” (Ex
34,29).
Marcos não fala do rosto
de Jesus, mas Mateus diz que: “O seu rosto brilhou como o sol” (Mt
17,2), e Lucas diz: “Seu rosto mudou de aparência” (Lc 9,29).
Na transfiguração Jesus
deixou transparecer sua natureza divina, aquilo que ele sempre recomendara aos
seus apóstolos que não fosse revelado até que ressuscitasse dos mortos: “Então
Jesus proibiu severamente que eles falassem a alguém a respeito dele.” (Mc
8,30) e, ao descer da montanha, Jesus faz novamente essa recomendação: “Ao
descerem da montanha Jesus recomendou-lhes que não contassem a ninguém o que
tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos.” (Mc
9,9).
Enquanto estava
transfigurado, “apareceram-lhes Elias e Moisés, que conversavam com ele.” (Mc
9,4). Moisés representava a Lei e Elias os profetas.
No tempo de Jesus havia
uma crença de que Elias estava vivo, não havia morrido, porque “Enquanto
estavam andando e conversando (Elias e Eliseu), apareceu um carro de
fogo com cavalos de fogo, que os separou um do outro. E Elias subiu ao céu no
redemoinho.” (2Rs 2,11), e os judeus estavam no aguardo da realização da
profecia de Malaquias que Yahweh enviaria Elias para anunciar a vinda do
Messias: “Vejam! Eu mandarei a vocês o profeta Elias, antes que venha o
grande e terrível dia de Yahweh.” (Ml 3,23).
Jesus era maior que Moisés
e Elias. Moisés foi o legislador da lei antiga, Jesus, através do seu sangue,
sanciona a Nova Aliança. Elias é o príncipe dos profetas do Antigo Testamento.
Jesus não é mais um profeta, é O Profeta por excelência.
Pedro ficou inebriado,
confuso e estático com o que estava vendo, como disse Lucas no seu evangelho: “Pedro
não sabia o que estava dizendo” (Lc 9,33b), mas disse: “Mestre, é bom
ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra
para Elias.”! (Mc 9,5). Nas grandes festas do povo, quando os judeus
afluíam a Jerusalém para as comemorações, as famílias construíam tendas para
ali permanecerem até o final das festividades, como na festa das Tendas (cf Jo
7,2). Pedro queria que aquele momento não fosse passageiro e permanecesse até
pelo menos quando ele e seus companheiros, Tiago e João, pudessem entender o
que estava acontecendo. Mas eis que, de repente “desceu uma nuvem e os cobriu
com a sua sombra” (Mc 9,7).
O Antigo
Testamento fala de uma nuvem que acompanhava o povo no deserto. Orígenes,
teólogo do século III, fala e diz “No que eles acreditavam ser uma nuvem,
Paulo vê o Espírito Santo”. Não foi isso que Gabriel falou para Maria? “O
Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Altíssimo a cobrirá com a sua
sombra.” (Lc 1,35).
A nuvem
manifesta a presença de Deus como tinha acontecido no Sinai com Moisés (cf Ex
19,16). Mas, ao invés de trovões e relâmpagos que saiam das nuvens, como
aconteceu a Moisés, com Jesus “da nuvem saiu uma voz: ‘Este é meu Filho
amado. Escutem o que ele diz.” (Mc 9,7).
Esta é a mesma
frase dita pelo profeta Isaias e que foi ouvida depois que Jesus foi batizado e
saiu da água (Is 42,1; Mc 1,11).
O Pai
apresenta o seu Filho único aos três discípulos. O Pai dá a identidade de
Jesus: ele é o Filho amado do Pai. Este é o âmago, o coração do Evangelho de
Marcos.
“Escutem o
que ele diz”. As palavras, os ensinamentos de Jesus têm o pleno aval do
Pai. Isso reafirma o que Moisés disse ao povo no deserto: “Yahweh seu Deus
fará surgir, dentre seus irmãos, um profeta como eu em seu meio, e vocês o
ouvirão” (Dt 18,15). Moisés disse: “vocês o ouvirão”. Agora o Pai
diz: “Escutem o que ele diz”. A ordem do Antigo Testamento é para o
futuro: “vocês o ouvirão”. A ordem do Pai é para o presente: “Escutem
o que ele diz”.
“E, de
repente eles olharam em volta e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus
com eles”. (Mc 9,8). Aquele mesmo Jesus
que estava preparando seus discípulos para a sua hora, a hora do Calvário, para
a condenação por parte dos chefes de Israel, é exatamente o “Filho amado”
de Deus. Precisamente ele, não mais Moisés ou Elias, é o Mestre que agora Deus
Pai apresenta ao mundo. E é a nação eleita, que tinha escutado Moisés e Elias,
que iria cumprir o mais trágico erro judicial: condenar o Filho amado do Pai ao
suplício da Cruz.
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