III DOMINGO DO TEMPO COMUM
Ano – A; Cor – verde; Leituras: Is 8,23b-9.3; Sl 26 (27); 1Cor 1,10-13.17; Mt 4,12-17.
“CONVERTAM-SE, PORQUE O REINO DE DEUS ESTÁ PRÓXIMO”. (Mt 4,17).
Diácono Milton Restivo
O profeta Isaias, novamente, aparece na primeira leitura da liturgia e, como já foi dito em meditações anteriores, Isaias é conhecido como o mais messiânico profeta do Antigo Testamento, isto é, o que mais profetizou sobre a vinda do Messias: a origem do Messias, seu nascimento, quem seria sua mãe, quem seria o seu precursor, o seu reinado, a sua paixão e morte. Desta feita, Isaias profetiza onde o Messias iniciaria a sua missão, não em Judá, mas numa terra esnobada e tida como “um povo que andava nas trevas... um país tenebroso” por parte dos judeus: “o povo que andava nas trevas viu uma grande luz, e uma luz brilhou para os que habitavam um país tenebroso”. Isaias escreveu que “o povo que andava nas trevas viu uma grande luz, e uma luz brilhou para os que habitavam um país tenebroso” (Is 9,1; Jo 8,12), isto é, que o Messias viria da Galiléia, considerando que os judeus, pela sua prepotência, arrogância e discriminação em relação aos outros povos, consideravam a região ao norte de Judá, a Galiléia, como “um país tenebroso de um povo que vivia nas trevas”, e às vezes, até chamada de “Galiléia dos pagãos” por causa da forte mistura da população de origem da terra com elementos pagãos dos povos estrangeiros, principalmente assírios e esse povo “vai alegar-se diante de ti, como na alegria da colheita, como no prazer de quem reparte despojos de guerra. Porque, como no dia de Madiã, quebraste a canga de suas cargas, a vara que batia em suas costas e o bastão do capataz de trabalhos forçados”. (Is 9,2b-3).
O Salmo desta liturgia transcreve um voto de extrema confiança do escritor sagrado, o rei Davi, ao Senhor: “Yahweh é minha luz e salvação: de quem terei medo? Yahweh é a fortaleza da minha vida: frente a quem temerei?”. (Sl 26 (27),1) que mais tarde Paulo repetiria com outras palavras, mas com a mesma confiança: “O que nos resta dizer? Se Deus esta a nosso favor, quem estará contra nós? Ele não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós. Como não nos dará também todas as coisas junto com o seu Filho? Quem acusará os escolhidos de Deus? É Deus quem torna justo”. (Rm 8,31-33), corroborando o que Jesus dissera ao se despedir dos seus discípulos e apóstolos: “Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo”. (Mt 28,20b). E Paulo dá o grito de vitória por estar sob a proteção do Altíssimo: “Mas em todas essas coisas somos mais que vencedores por meio daquele que nos amou”. (Rm 8,37).
A segunda leitura é tirada da carta de Paulo aos Corintos, a primeira. Havia em Corinto uma comunidade judaica com sua sinagoga: “Todos os sábados, Paulo discutia na sinagoga, procurando convencer judeus e gregos”. (At 18,4). Foi na cidade de Corinto que Paulo entendeu o que Jesus quis dizer, quando disse: “Felizes os pobres de espírito, porque deles é o Reino do Céu”. (Mt 5,3), porque a maioria dos convertidos ao cristianismo daquela cidade era escravos submissos ou libertos. Dentro da comunidade existiam vários grupos que se formavam em torno de certas figuras proeminentes, acontecendo até brigas entre esses seguimentos. Cristãos da comunidade, “da casa de Cloé” escrevem para Paulo relatando esse fato: “Meus irmãos, alguns da casa de Cloé me informaram que entre vocês existem brigas” (1Cor 1,11), a respeito do qual Paulo não tolera e chama a atenção dos que assim procedem: “É que uns dizem: ‘Eu sou de Paulo! ’ E outros: ‘Eu sou de Apolo! ’ E outros mais: ‘Eu sou de Pedro! ’ Outros ainda: ‘Eu sou de Cristo! ’” (1Cor 1,12).
Infelizmente essa divisão acontece ainda na nossa Igreja, nos nossos dias. Grupos se reúnem e se isolam da unidade da Igreja. Grupos que tem as suas próprias missas, as suas próprias reuniões as suas próprias lideranças, os seus próprios membros que não se misturam com os demais, que se julgam mais santos como pensavam os fariseus do tempo de Jesus, e não vivem a unidade pretendida por Jesus: “haverá um só rebanho e um só pastor”. (Jo 10,16). Grupos que se digladiam entre si julgando que, por pertencer àquele determinado grupo tem mais privilégios na família de Deus. Grupos que têm as suas próprias normas e que não participam do banquete eucarístico que o Pai oferece aos seus filhos semanalmente, partilhado em família. Grupos que participam das reuniões e missas do grupo, que acontece periodicamente, mas se ausentam das reuniões dominicais da família de Deus que é a Santa Missa. Não são comprometidos. Quem é enviado de Cristo não pode servir de bandeira de um grupo. Cristo é único, e não podemos dividi-lo. Hoje, como no tempo de Paulo, padres, pastores, ministros de vários seguimentos religiosos, movimentos e outros mais se arvoram como que se a verdade estivesse sob seu domínio e Jesus sob seu comando e, a esses, Jesus tem as mesmas palavras que dirigiu aos doutores da Lei e fariseus do seu tempo: “Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês fecham o Reino do Deu para os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar aqueles que desejam. [...] Por isso vocês vão receber uma condenação mais severa. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas. Vocês percorrem o mar e a terra para converter alguém, e quando conseguem, o tornam merecedor do inferno duas vezes mais do que vocês. [...] Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e podridão! Assim também vocês: por fora parecem justos diante dos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça [...] Serpentes, raça de cobras venenosas! Como é que vocês poderiam escapar da condenação do inferno?”. (Mt 23,13.15.27-28.35). Como deixa transparecer nos seus escritos, no tempo de Paulo não era diferente: havia desavenças, discórdias, brigas e panelinhas na comunidade; desunião e formação de grupos simpatizantes com este ou aquele agente de pastoral que passava pela cidade ou que lá permaneciam, e Paulo não se cala: “Eu lhes peço, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo: mantenham-se de acordo uns com os outros, para que não haja divisões. Sejam estreitamente unidos no mesmo modo de pensar”. (1Cor 1,10-12). Paulo bate forte dizendo que Cristo é o centro, e os agentes de pastorais não o são (1Cor 1,10-17; 3,1-17; 4,1-13) e que a sabedoria de Deus se manifesta na Cruz de Cristo e não na sabedoria da sociedade injusta (1Cor 1,18 – 2,16; 3,18-23).
O Evangelho narra que, após o seu batismo, Jesus, por precaução e prudência, voltou para a Galiléia, de onde tinha vindo, considerando que João Batista fora preso por ordem de Herodes: “Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galiléia. Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galiléia, nos confins de Zabulon e Neftali”. (Mt 4,12-13). Possivelmente Jesus tenha feito isso para não se expor à prepotência de Herodes e não correr o risco de, ao começar a sua pregação, ser preso por aquele monarca sanguinário, colocando em prática o que mais tarde ele ensinaria aos seus discípulos e apóstolos, quando os enviaria para a missão: “Eis que eu envio vocês como ovelhas no meio de lobos. Portanto, sejam prudentes como as serpentes e simples como as pombas. Tenham cuidado com os homens...”. (Mt 10,16-17a).
Esta não foi a primeira e nem a única vez que Jesus tomou essa atitude, a de fugir do perigo de colocar a sua vida em risco. O fato de João Batista ter sido preso e depois ser envidado para a morte e executado, é como um prelúdio do que estava reservado para Jesus, por isso, ele afasta-se: “Quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu e foi de barca para um lugar deserto e afastado”. (Mt 14,13; Lc 9,10). Esta volta de Jesus para a Galiléia vai de encontro com o que o profeta Isaias já falara do Messias e o narrado na primeira leitura é repetido por Mateus no seu Evangelho: “Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galiléia dos que não são judeus! O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; e uma luz brilhou para os que viviam na região escura da morte”. (Mt 4,15-16; Is 8,23 – 9,1). Jesus volta para a Galiléia, mas não para Nazaré, e fixa residência em Cafarnaum. A Galiléia era um lugar de refugiados e estrangeiros marginais, chamada pelos judeus de Galiléia das nações por haver uma mistura muito grande de pessoas de várias nacionalidades e religiões, ou de Galiléia dos pagãos, considerando que os estrangeiros não seguiam a Lei de Moisés. E é para lá que Jesus vai para dar início à pregação do Evangelho, da Boa Nova. A partir daí começam a ser citadas algumas cidades da Galiléia que nunca antes houveram sido citadas nas Sagradas Escrituras com, por exemplo, Betsaida, que quer dizer “casa da pescaria”, por ficar às margens do lago ou mar da Galiléia, e onde nasceram e foram chamados para o apostolado por Jesus Felipe e os irmãos André e Pedro. Outra cidade é Caná, chamada de Caná da Galiléia, onde Jesus fez o seu primeiro milagre num casamento, transformando água em vinho (cf Jo 2) e onde nasceu o apóstolo Natanael. Cafarnaum, onde Jesus fixou residência (cf Mt 4,13; 9,1), também nunca tinha sido citada em toda a Bíblia. Cafarnaum e seus arredores formaram o cenário de grande parte das atividades de Jesus. Jesus ensinou na sinagoga da cidade: “Foram à cidade de Cafarnaum e, no sábado, Jesus entrou na sinagoga e começou a ensinar.” (Mc 1,21). Em Cafarnaum moravam, também, Pedro e seu irmão André: “Saíram da sinagoga e foram para a casa de Simão Pedro e André, junto com Tiago e João”. (Mc 1, 29). A cidade de Nazaré, na Galiléia, também é citada somente no Novo Testamento e se tornou importante após os acontecimentos da anunciação do anjo Gabriel a Maria (Lc 1,26-38) e onde Jesus passou a sua infância, adolescência e juventude. No início da vida pública de Jesus os habitantes de Nazaré, sua cidade, odiaram de tal maneira a Jesus e sua pregação que tentaram precipitá-lo do alto de um precipício (cf Lc 4,16-30). Foi na cidade de Cafarnaum que Jesus diz as primeiras palavras da Boa Nova, convocando o povo à conversão, repetindo as mesmas palavras de João Batista quando batizava nas margens do rio Jordão: “naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judéia: ‘Convertam-se, porque o Reino do Céu está próximo” (Mt 3,1-2), e Jesus lança mão das mesmas palavras para dar início à sua missão: “Convertam-se, porque o Reino do Céu está próximo”. (Mt 4,17b). O evangelista Marcos também faz questão de destacar esse momento: “Jesus voltou para a Galiléia pregando a Boa Notícia de Deus: O tempo já se cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se, e acreditem na Boa Notícia” (Mc 1,14-15). Mateus, no seu Evangelho, não usa a expressão “Reino de Deus” como os outros evangelistas considerando que ele escreveu o seu evangelho para os judeus, e, de acordo com a Lei de Moisés, os judeus não podiam pronunciar o nome de Deus, por isso Mateus uma o termo “Reino do Céu”. Jesus conclama a todos à conversão. Converte-se é trilhar o caminho da humildade, da pobreza, da mansidão, da misericórdia, da promoção da paz. Conversão não se trata de adesão ao um determinado grupo religioso, mas é, sobretudo, disponibilidade de coração para entrar no seguimento de Jesus. Conversão exige viver numa contínua penitência com o intuito de endireitar nossas “velhas estradas existênciais” marcadas pelas pedras do tropeço e da infidelidade. Esta foi à proposta de João Batista, e deve ser a nossa meta: “Preparem o caminho do Senhor, endireitem suas estradas” (Mt 3,2). Conversão é um processo em marcha, nunca acabado, nunca definitivo. Estamos sempre nos convertendo. É um engano dizer que estamos convertidos. Nesse terreno estamos sempre a caminho. Dirigindo-se aos convertidos da Igreja primitiva, Pedro não cessava de recomendar: “Convertam-se” (At 2,37s). Conversão é, portanto, vida nova vivida pelo “homem novo – uma nova criatura” (cf. 2Cor 5,17; Ef 4,24; Cl 3,10), ou seja, por aquele ser humano que deixou triunfar em si o poder do Espírito de Deus, capaz de tudo transformar. Converter-se é optar pelo amor. E Jesus começou a sua vida pública fora de Judá, na Galiléia, terra menosprezada pelos judeus. Foi nessa região que Jesus escolheu os seus primeiros discípulos, que viriam a ser os seus primeiros apóstolos: os Irmãos André e Pedro, e os irmãos Tiago e João. Eram pescadores que tiravam o sustento de sua família das águas do lago, também chamado mar da Galiléia. A esses, ao serem chamados, Jesus diria: “Sigam-me, e eu farei de vocês pescadores de homens”. (Mt 4,19). Como narram os Evangelhos, repito, Jesus não começou a sua missão nas terras de Judá, o povo que se julgava escolhido e preferido por Yahweh. Começou, sim, em terras estrangeiras que tinham uma população considerada escória por parte dos judeus “porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o que se havia perdido”. (Lc 19,10). “O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; e uma luz brilhou para os que viviam na região escura da morte”. (Mt 4,16).
Mais tarde Jesus confirma essa profecia ao afirmar ser ele a luz: “Eu sou a Luz do mundo, quem me segue não andará nas trevas, mas possuirá a luz da vida”. (Jo 8,12). “Eu vim ao mundo como luz, para que todo aquele que acredita em mim não fique nas trevas”. (Jo 12,46). Depois de proclamar os pobres como felizes e bem-aventurados no sermão da montanha, Jesus diz: “Vocês são a luz do mundo [...] Assim também, que a luz de vocês brilhe diante dos homens, para que eles vejam as boas obras que vocês fazem, e louvem o Pai de vocês que está no céu”. (Mt 5,14.16).
No batismo, o batizando recebe essa luz de Jesus, quando os pais ou padrinhos acendem a vela no Ciro Pascal, que é o Cristo, irradiando a sua luz e expulsando as trevas do mundo, e colocam essa vela na mão do batizando, tornando-o, com Cristo, por Cristo e em Cristo, luz para iluminar a escuridão que reina no mundo: “Na Palavra estava a vida, e a vida era a luz dos homens. Essa luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram apagá-la.” (Jo 1,4-5). Pelo batismo, somos chamados a ser discípulos de Jesus, convivendo com ele, participando de sua vida e unindo-se a ele. “Sigam-me e eu farei vocês se tornarem pescadores de homens” (Mc. 1,17). Não podemos dissociar Jesus de sua missão, que nada mais era do que a defesa da vida em todas as circunstâncias. “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo. 10,10).
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