segunda-feira, 14 de novembro de 2011

20º DOMINGO DO TEMPO COMUM - ANO "A"

XX DOMINGO DO TEMPO COMUM
Ano – A; Cor – verde. Leituras: Is 56,1.6-7; Sl 66 (67); Rm 11,13-15.29-32; Mt 15,21-28.

“SENHOR, FILHO DE DAVI, TEM PIEDADE DE MIM”. (Mt 15,22).

Diácono Milton Restivo

É interessante como Deus usa os meios para chegar a todos os povos, a todas as gentes, a todas as pessoas. Os israelitas julgavam-se salvos e, por isso, poderiam ignorar o que Jesus lhes dizia, simplesmente por se dizerem filhos de Abraão, descendentes de Abraão: “Nós somos descendentes de Abraão, e nunca fomos escravos de ninguém. Como podes dizer: ‘vocês ficarão livres’? [...] Nosso pai é Abraão.” (Jo 8,33.39a).
Abraão era considerado o pai biológico dos judeus, os quais podiam traçar sua linhagem genealógica até a paternidade do patriarca. Isto era orgulho para eles e que eles julgavam a única coisa necessária para serem salvos e superiores aos demais povos aos olhos de Yahweh. Os judeus apenas se vangloriavam de ser filhos de Abraão, mas não imitavam as suas virtudes e, por isso, Jesus lhes chama a atenção: “Se vocês são filhos de Abraão, façam as obras de Abraão. Agora, porém, vocês querem me matar, e o que eu fiz foi dizer a verdade que ouvi junto de Deus.  Isso Abraão nunca fez.” (Jo 8,39b-40). João Batista já tinha alertado as autoridades religiosas dos judeus antes de Jesus, quando lhes chamara a atenção: “Não pensem que basta dizer: ‘Abraão é nosso pai’. Porque eu lhes digo: até destas pedras Deus pode fazer nascer filhos de Abraão.” (Mt 3,9).
Mais tarde Paulo contestaria essa atitude nacionalista e separatista dos judeus: “De fato, vocês todos são filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, pois todos vocês que foram batizados em Cristo, se revestiram de Cristo. Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo. E se vocês pertencem a Cristo, então vocês são de fato a descendência de Abraão e herdeiros conforme a promessa.” (Gl 3,26-29).
No início do seu Evangelho João alertava a respeito da rejeição do povo judeu para com Jesus no meio de seu próprio povo, os que se intitulavam “descendentes de Abraão”: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.” (Jo 1,11-13).
Desde o início de sua pregação Jesus começa a ser mal interpretado e perseguido por seu povo. Sua própria família é a primeira a manifestar preocupação com a sua atitude, querendo recolhê-lo para sua casa julgando que estivesse louco: “Quando souberam disso, os parentes de Jesus foram segurá-lo, porque eles mesmos estavam dizendo que Jesus tinha ficado louco.” (Mc 3,21).
Os doutores da Lei, em Jerusalém, fazem pouco de Jesus e dizem que ele é partidário do demônio porque Jesus expulsava demônio: “Ele está possuído por Belzebu’, e também: ‘É pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios’.” (Mc 3,22). A sua própria cidade, Nazaré, onde Jesus vivera a sua infância, adolescência e mocidade, não o aceita como ele realmente é: “De onde vem tudo isso? Onde foi que arranjou tanta sabedoria? E esses milagres que são realizados pelas mãos dele? Esse homem não é o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de Josef, de Judas, de Simão? E suas irmãs não moram aqui conosco’? E ficaram escandalizados por causa de Jesus.” (Mc 6,2b-3), tendo Jesus dito, na oportunidade, que “um profeta só não é estimado em sua própria pátria, entre seus parentes e em sua família.” (Mc 6,4). Continuando a leitura dos Evangelhos, vemos qual foi o fim de Jesus, confirmando aquilo que João dissera no início do seu Evangelho: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.” (Jo 1,11).
Para se resguardar da sanha sanguinária do rei Herodes e do ódio e da perseguição das autoridades religiosas judaicas que o queriam matar, Jesus se refugiava ora no deserto, ora em regiões neutras e lugares longe do alcance de seus inimigos, como vemos depois da execução de João Batista a mando de Herodes: “Quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu, e foi de barca para um lugar deserto e afastado.” (Mt 14,13).
Na leitura do Evangelho de hoje vamos encontrar Jesus longe do alcance dos seus perseguidores, em terras estrangeiras: “Jesus saiu daí, e foi para a região de Tiro e Sidônia.” (Mt 15,21).
Mas, por que essa rejeição? Porque Jesus não possuía nenhuma característica do Messias anunciado no Antigo Testamento por muitos profetas: ele não viria para morrer por alguém, ou para salvar ou perdoar pecados. No judaísmo não existia a intercessão ou mediação, coisa que Jesus se propôs a fazer: “O que vocês pedirem em meu nome, eu o farei, para que o Pai seja glorificado no Filho. Se vocês pedirem qualquer coisa em meu nome, eu o farei.” (Jo 14,13-14).
Profetas do Antigo Testamento anunciaram o Messias como alguém que viria diretamente do céu, e que a ele teria sido dado todo domínio, poder, honra e glória, com domínio eterno e adoração de todos os povos e seu reino invencível, como profetizara o projeta Daniel: “Em imagens noturnas tive esta visão: entre as nuvens do céu vinha alguém como um filho de homem. Chegou até perto do Ancião e foi levado à sua presença. Foi-lhe dado poder, glória e reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. O seu poder é um poder eterno, que nunca lhe será tirado. E o seu reino é tal que jamais será destruído.” (Dn 7,13-14).
Os judeus mentalizaram essa imagem do Messias, que viria montado em um belo cavalo branco e diretamente do céu, bramindo uma espada reluzente, comandando exércitos disciplinados e invencíveis para derrotar todos os inimigos do povo judeu e fazer desse povo um povo dominador de todos os povos.
Ao analisar o Messias que deveria vir os líderes religiosos judeus transmitiam ao povo que o Messias deveria ser um líder triunfante, um chefe político e que conduziria seu povo à liberdade e derrotaria seus dominadores. Foram os chefes políticos e religiosos do povo judeu que ajudaram a fundar e a estruturar a consciência judaica sobre um Messias lutador, invencível.
Um Messias verdadeiro seria um Messias guerreiro que iria libertar seu país e ser seu rei como jamais houve rei igual e como nem Salomão teria sido. Os judeus esperavam um Messias político, que os colocasse acima de todos os povos da terra. No entanto, esta visão meramente humana a respeito do Messias, afetou também os apóstolos, conforme vemos em Mateus 20,17-27, mas Jesus os contesta afirmando: “Pois o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir, e para dar a vida como resgate em favor de muitos.” (Mt 20,28).
Contrariando a imagem do Messias guerreiro e político, houve profetas, como Davi, Zacarias e Isaias, que anteciparam a verdadeira realidade do Messias que deveria vir: “Dance de alegria, cidade de Sião; grite de alegria, cidade de Jerusalém, pois agora o seu rei está chegando, justo e vitorioso. Ele é pobre, vem montado num jumento, num jumentinho, filho de uma jumenta.” (Zc 99). O profeta Isaias descreve um Messias sem a roupagem do poder e do triunfo político e temporal. Isaias descreve um Messias místico, que falava e vivia o sentido mais profundo e atemporal de Deus. Um Messias que sofreria por causa da ignorância dos homens: “O Senhor Yahweh abriu meus ouvidos e eu não fiz resistência nem recuei. Apresentei as costas para aqueles que me queriam bater e ofereci o queixo aos que me queriam arrancar a barba, e nem escondi o meu rosto dos insultos e escarros. O Senhor Yahweh me ajuda, por isso não me sinto humilhado; endureço o meu rosto como pedra, porque sei que não vou me sentir fracassado.” (Is 50,5-7). O rei e profeta Davi também vislumbra o Messias sofredor: “Todos os que me vêem zombam de mim, abrem a boca, balançam a cabeça: ‘Ele recorreu a Yahweh... pois que Yahweh o salve! Que o liberte, se é que o ama de fato’!” (Sl 22(21),8-9).
Aqueles que seguiam a Jesus, que viam seus milagres e percebiam autoridade em sua fala, não tardaram a confundi-lo com esse Messias guerreiro/estadista. Eles sabiam que Jesus tinha poder. O que restava era saber quando ele iria assumir a liderança do seu povo e tomar o poder. Mas isto não aconteceu, isso Jesus não fez. E muitos foram os que se decepcionaram com isso. Jesus não se desviou do seu caminho, não permitiu que o orgulho, a vaidade e a sede de poder o dominassem e, por isso afirma: “Pois o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir, e para dar a vida como resgate em favor de muitos.” (Mt 20,28). Em vez de criar um reino que logo se corromperia e seria tão opressor como os demais, Jesus preferiu deixar sua história, palavras e exemplos como testamento. Sua vida serviria de luz para guiar a humanidade. Não só um povo, mas todos os povos, em todas as épocas.
Os judeus esperavam um Messias glorioso, político, guerreiro e vencedor, e Jesus vem como um caminheiro, andarinho, que percorria estradas poeirentas e ensolaradas e que ia de cidade em cidade anunciando um Reino que fugia ao entendimento de quem esperava um reino terrestre, filho de um humilde carpinteiro, tendo à sua volta apenas pobres, estropiados, miseráveis, doentes, discriminados, tanto social, política como religiosamente, a escória da sociedade corrupta que se sentia salva única e exclusivamente por ser filha e descendente de Abraão. Jesus pagou um preço bem alto por não ter feito o que os homens queriam. Sua primeira vinda foi como “o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo.” (Jo 1,29).
Será que, com essa ligeira explanação poderíamos entender o porque da rejeição das autoridades religiosas judaicas em relação a Jesus? Por isso ele teve que fugir várias vezes para o deserto ou para regiões estrangeiras e neutras, fora do alcance das autoridades políticas e religiosas do seu povo. E, desta vez, “Jesus saiu daí, e foi para a região de Tiro e Sidônia.” (Mt 15,21). Com essa atitude, Jesus vai ao encontro de outros povos, que não são judeus, porque ele “veio para o que era seu, e os seus não o receberam.” E o que não era seu, não perdeu a oportunidade e se aproxima de Jesus. Uma mulher estrangeira, originária de Caná, portanto, cananéia, vem até Jesus aos gritos.
A fama de Jesus precedia-o onde quer que ele fosse. Foi ali que uma mulher com o coração despedaçado pela doença de sua filha, o procurou. Essa mulher era de origem cananéia, isto é, estrangeira, tinha raízes e religião pagãs, não judaicas e era, portanto, discriminada e tida como maldita pelos judeus. A mulher estava extremamente afligida devido ao fato de sua filha estar possuída por um demônio que lamentavelmente a atormentava.
A mulher, já reconhecendo a divindade de Jesus e a sua procedência real, vai atrás dele, gritando: “Senhor, filho de Davi...”. Onde teria essa mulher aprendido acerca do Messias? Teria ela ouvido alguém falar sobre Jesus? Teria ela viajado para a Galiléia, estando presente entre as multidões que seguiam a Jesus e presenciado as suas maravilhas?
Mas a mulher não veio só para enaltecer Jesus; ela veio para pedir, e fez dois pedidos seguidos; primeiro: “Tem piedade de mim”; segundo: “minha filha está cruelmente atormentada por um demônio”. O problema da filha a afetava cruelmente e ela toma para si as dores da filha. Ela não diz: “Tem piedade de minha filha”, mas, “tem piedade de mim”. Jesus, aparentemente, ignora a mulher desesperada; o silêncio de Jesus é angustiante. Também na nossa vida, há momentos em que parece que Deus não nos ouve. Outro exemplo da impassividade de Jesus foi por ocasião da morte de Lázaro. As irmãs Marta e Maria esperaram angustiosamente por Jesus por quatro dias, e somente depois disso é que Jesus foi até elas, depois que Lázaro havia morrido e já sido colocado no túmulo (cf Jo,11). Deus pode provar a nossa fé não atendendo logo à nossa oração, mas estimulando uma busca insistente para que saibamos exatamente o que queremos. À primeira vista parece que a mulher cananéia se sentiu rejeitada, discriminada, mesmo porque “seus discípulos aproximaram-se e lhe pediram: ‘Manda embora essa mulher, pois ela vem gritando atrás de nós.” (Mt 15,23).
Olha a insensibilidade dos discípulos: “Manda embora essa mulher”. Isso nos reporta à parábola contada por Jesus sobre o Pai misericordioso ou mais conhecida como a do filho pródigo, quando o filho mais velho se refere ao seu irmão, na conversa com o Pai, dizendo: “Esse teu filho...” (Jo 15,3), não o reconhecendo como “irmão”. E isso é uma realidade desde a primeira família na criação do mundo quando Caim, perguntado por Yahweh onde estava seu irmão Abel, Caim responde: “Por acaso sou o guarda do meu irmão”? (Gn 4,9).
Essa insensibilidade permanece no século XXI, terceiro milênio: “esse teu filho (que não considero como irmão)... não sou guarda do meu irmão (ele que cuide da vida dele)... manda embora essa mulher... (que está sendo inconveniente e que nem pertence ao nosso grupo, à nossa pastoral, ao nosso movimento)”. E Jesus responde: “Eu fui mandado somente para as ovelhas perdidas do povo de Israel.” (Mt 15,24).
Jesus responde um “não” à mulher, e seus discípulos, com essa palavra forte, já valia por uma recusa clara. Ai entra em cena a atitude corporal da mulher: Mas a mulher, aproximando-se, ajoelhou-se diante dele e começou a implorar: ‘Senhor, ajuda-me’.” (Mt 15,25). É uma atitude não somente de súplica, mas, acima de tudo de adoração. Reafirmando a sua confiança extrema no Messias, a mulher faz um pedido enaltecido pela fé e com um ato de adoração: “ajoelhou-se diante dele”, dizendo: “Senhor, ajuda-me”.
Mas Jesus parece intransigente e, para nós que desconhecemos a história, o costume da época no relacionamento entre judeus e não judeus e o tratamento que era destinado aos não judeus pelos judeus, nos chocamos com a resposta de Jesus: “Não está certo tirar  o pão dos filhos, e jogá-lo aos cachorrinhos”. (Mt 15,26). Mas a mulher, demonstrando a sua fé inabalável, reconheceu que a salvação viera primeiro para os judeus, não descartou que a misericórdia de Deus iria abranger, também, todos os demais povos, e não se sente humilhada e nem discriminada com essa colocação de Jesus, e retruca cheia de convicção: “Sim, Senhor, é verdade; mas também os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa dos seus donos.´(Mt 15,27). A mulher demonstrou, pela sua fé, que ficaria satisfeita com apenas uma migalha da mesa do seu Mestre.
Jesus já havia ensinado aos seus discípulos em outra ocasião: “Peçam, e lhes será dado! Procurem, e encontrarão! Batam, e abrirão a porta para vocês! Pois, todo aquele que pede, recebe; quem procura, acha; e a quem bate, a porta será aberta.” (Mt 7,7-8). A mulher entendeu bem esse princípio. Conforme sugerido anteriormente, com a intenção de aumentar e testar a sua fé, Jesus colocou pequenas barreiras no caminho dessa mulher, mas ela superou-as todas elas. Isso é evidência clara que Jesus tinha uma percepção divina que penetrava através da essência da alma dessa mulher. A mulher era uma pessoa forte, mas este encontro com Jesus a tornaria ainda mais forte. Jesus, com certeza, conhecia a qualidade da alma dessa mulher e desafiou-a a amadurecer.
De um modo maravilhoso, Jesus colocou vários obstáculos no caminho da mulher, cada um dos quais ela superou com uma fé radiante. Finalmente, vencido pela fé da mulher, Jesus se rende: “Mulher! É grande a sua fé!” (Mt 15,28a). Isso, novamente, vem-nos à mente outro ensinamento de Jesus a respeito da oração e da fé: “Eu garanto a vocês: se alguém disser a esta montanha: ‘Levante-se e jogue-se no mar, e não duvidar no seu coração, mas acreditar que isso vai acontecer, assim acontecerá’. É por isso que eu digo a vocês: tudo o que vocês pedirem na oração, acreditem que já o receberam, e assim será.” (Mc 11,23-24).
A insistência e ousadia da mulher cananéia fez com que Jesus atendesse ao seu pedido e com isso provou para todos que em Deus não há diferença entre cultura, cor, raça, sexo, credo, religião ou região. Foi, pois, pela fé manifestada através dos gestos humildes dessa mulher pagã que Jesus atende ao seu clamor: “E desde aquele momento a filha dela ficou curada.” (Mt 15,28b).
Jesus curou a filha da mulher cananéia sem sequer colocar os olhos sobre a filha. Foi um milagre a longa distância, como ele já havia feito com o filho do funcionário do rei que tinha um filho doente, narrado em João 4,46,54.

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